noturno

Mas para mim o bom é nunca ser vento revolto que traz a chuva forte, que destrói. Vento forte é bom também. Mas mexe muito com as coisas da gente. Gosto de chover de noite. Enquanto chove, eu chovo também. Chuva da noite acalma os medos da gente. Medo do que não se vê. Do que já está além da fumaça negra. E tudo que quero da noite é que ela traga o outro dia. Um dia novo, descansado. Às vezes, no escuro tudo fica claro, entende? Mesmo quando se está na cidade. Mesmo aqui onde estou. Aqui é seguro, pelo medo que os outros têm. Mas o medo, se tem mesmo assim. Medo do que não é ainda. E do que está escondido. Bem ali. E não se sabe. Pois não se conhece o que é claramente, percebe? Ontem ouvi tiros perto daqui. Achei que fossem fogos. Mas pelo barulho seco da explosão, era tiro mesmo. Logo depois muitos carros de polícia chegaram. Correria. Roubaram um carro, parece. Na fuga, bateram. Já saíram atirando nos guardas. Parece que mataram alguém. A gente pensa que tem segurança. Isso é coisa que não existe. Mesmo a gente, nessa condição, a violência fica perto. Só rondando. Encontrando a primeira oportunidade para se manifestar. Sempre pensei que a violência é coisa que está no ar. A gente não vê, mas sente de longe. Fumaça; como falei.
De tudo já passei em muitas noites, em dias também. Ver o outro que está ali, próximo , passando por tudo aquilo também. A vida traz a incerteza para o espírito compreender tudo. Mas às vezes não entendo. E nessa hora a gente se revolta por não compreender nada da vida. Daí a gente começa a querer falar pra dentro da gente mesmo. E então encontra as tristezas que estão lá no fundo. Daquelas que não deixa a voz sair. Daí a gente vai ficando mudo de tanta tristeza quem tem. Não consegue mais falar. E vai ficando de lado. Tão de lado que quem passa perto, já não vê. O fazer parte é difícil. Não cabe. Tem coisa que não encaixa com a gente. Não adianta. Daí tem que buscar lá dentro, mergulhando, cada vez mais fundo, vai vendo o que estava perdido. Assim dessa forma; com mão. Como se se pudesse enfiar a mão no oco do peito e trazer tudo a tona. Examinar. Olhar bem no detalhe. E depois a gente se acha louco de ver o que não via. Loucura é coisa que dá em gente que pensa de mais. Aqui, vejo gente que pensa muito, mas não pensa as coisas que eu penso, sabe? É diferente. Mas de quê serve pensar o diferente. Esta é uma realidade que não se sustenta. Dor se sente. Muita. Quem vê de longe acha que não se sente nada. Que é tudo igual, uma massa de gente, perdida, que não sabe pra quê existir. Mas não. Eu sei o que sinto. Lá dentro. Eu sei o que é que eu tenho que falar. Mas às vezes até acho que não sou eu que estou falando. Que é outro falando por mim. É assim também o sentimento. Às vezes se sente o que não é seu. Sentimento que está no ar, como já disse. Pega você desprevenido. Entra pelo peito da gente. De repente você pega a sentir tristeza e não sabe por quê. Tem que ter atenção nesses assuntos de sentimento. Colocar atenção onde se respira. É coisa que está no ar. Você sente? O ar vai ficando pesado, e é aí onde tudo começa. Tem que saber por onde se respira também. Sou louco? Talvez. Mas eu não respiro em qualquer lugar. O calor é forte. Não se tem lugar pra ficar bem. Logo de manhã já está impossível. O dia vai passando e vai piorando. Tanto que da vontade de se refrescar. Aí vem um pessoal aqui perto e abre a torneira. Inventam de tomar banho aqui mesmo. Ficam só de calção. Todos passando, olhando. Fazem assim mesmo. É quente demais, aqui. Tem uns que já aproveitam pra lavar as roupas. Outros fazem barba. É assim que é. O calor aumenta. A pressão sobre. Tudo fica insuportável. Quando está assim saio e procuro um outro lugar. Gosto de sentar debaixo das árvores; sentir a brisa. Um refúgio, sabe. É mais leve pra mim. O ser humano é assim. Parece que todos se juntam pra brigar. Estresse. Como falei. É muito quente e a pressão de tudo aumenta.

chuvas

Chuvas. Pensamento. No final das contas tudo chove um pouco. E tudo escorre. E tudo vai pelo ralo. A água é interessante, me faz lembrar de como tudo escorre e acaba virando uma coisa só. Imaginação é como água que corre na enxurrada. Vai rolando, rolando, levando tudo que encontra pela frente pra dentro de rio. E o rio vai correndo, inundando tudo até que chega no mar. Mar de pensamentos. E depois de tudo, evapora, vira nuvem novamente. Mar de nuvens. Esponja de fumaça branca cheia de água. E quando a gente olha nem imagina, que, mesmo a gente querendo a água delas naquele exato momento, não se pode pegar. Pra se trazer a água de chuva tem que se imaginar muito forte elas vindo para terra. E daí é bonito. Eu acho. Ver a chuva caindo em véu, cobrindo a cidade. E ela vem e molha tudo. Todos. Sem perguntar quem merece ou não.

fome

Já era dia e a lua, persistente, flutuava em meio a poeira e nuvens. Foi o que vi quando acordei. Uma bituca de cigarro brevemente pisada ainda lançava seus fios contra a luz. A rua anunciava cheiro de fome. Gosto de escrever assim. Parecendo que vai ser publicado em livro. Mas a fome. Era do que eu falava. Fome é coisa que faz a gente pensar. Penso sempre em quem pode estar pior. Sempre me lembro das crianças da África. Não sei bem onde é. Mas é muita fome junta. A fome parece tão grande que as vezes eu acho que aquele povo nem quer mais comer. Se esqueceu o que é comida. Mas aqui é diferente. As pessoas têm fome, mas sempre tem onde encontrar um de comer. Sempre se encontra alguma coisa. Mas a fome é coisa que sempre se tem. Começa em baixo e quando passa pelo estômago abre um buraco, parece. Até dói. E devagar você percebe que sua cabeça começa a ficar zonza. E daí não consegue mais pensar. Beber, às vezes, faz a gente esquecer da fome. Dormir também; às vezes. Mas tem que ser bebida forte. Porque água não mata fome não. E o pensamento vai. E passa por cada coisa que a gente até desconfia que não está mais ali. E quando a gente cai em si, já foi. Coisas do pensamento. Pensamento é coisa selvagem. É um bicho estranho. Parece formiga quando encontra coisas. Uma vai chamando a outra e quando se vê tem aquele monte de formiga juntas. Todas trabalhando em equipe pra resolver aquele problema. Mas pensamento é pior. Parece que tem sempre migalha caindo. E sempre vai juntando mais. Não pára. Pra domar os pensamentos tem de escrever. Escrever é coisa que tira a fome também. Outro dia mesmo acordei com fome; olhei pro céu e choveu pensamento.