absoluto
epifania
1,2,3,4...
vida
recém-saído do buraco
agora conquista o mundo
de fora pra dentro
como deveria ser
e é
recém-nascido no espaço
mantém a postura altiva
no ascender e descender
o asfalto negro
que abarca vontades
abre-se em crateras minimais
de tempo e espaço
que correm à pé
num êxtase infinito
de fractais contritos
recebe as bênçãos
propagadas pelo vento
palavras recém faladas
expõem os sons dos cristais
contidos em infinitas vozes
presentes no momento do agora
proclamam: torna-te criança, e viva como a vida é!
às cegas
Friagem
Alguém me chamou. Pedindo coisa, pra variar. Bêbado, segurava a calça pra não cair. Tem um brabante aí? Não! Tem nada não. É pra podê amarrá aqui, ó! De olhos fechados, passeei com a mão por perto e achei uma tira de pano. Tem isso aí... cai fora! O desgraçado pendia de um lado a outro, parecia que o sapato, maior que o pé, estava colado ao chão. Tentava amarrar a tira de pano na cintura. A calça muito maior que o corpo dava na altura do peito. Doidera. Coisas que acontecem por aqui. Figura medonha. Cabeça raspada, cara suja, sem camisa, suado e fedendo à cachaça, foi cambaleando até uns sacos que tinha por ali e começou a escarafunchar. Com a voz que parecia vir de dentro de um balde, falou coisa em língua de bêbado. Não compreendo. Lembro de noites frias. Bebedeira. O frio aqui não poupa ninguém. Fizeram uma fogueira pra esquentar, daí aqueles caras vieram e mandaram apagar o fogo senão ia rolar paulada. Ninguém quer entrar em conflito nessas horas. Pensei que ia morrer essa noite. Na verdade, acordei achando que já estava morto. Sentia meu corpo adormecido pelo frio. Não dá pra esquecer de coisas assim. Tudo aqui é árido e frio. Se arruma de tudo pra esquentar mas parece que o frio vai entrando por tudo que é buraco e nada de esquentar. Sopa quente é bom pra essas horas. De vez em quando tem. A sorte é que sempre faz mais calor do que frio. Mas o frio é implacável. O da calça amarrada ainda estava sem camisa. Arrumou uns sacos e se enfiou dentro. Depois chegaram dois cachorros e deitaram ali do lado. A noite passou bem.
realidade
novelo
Frases, palavras, letras, tudo vai fluindo como num novelo; tudo é parte da mesma chuva.Tudo é líquido. A água é a mesma. Desde sempre. Nuvens da mesma era. Fumaça de água sobre nossas cabeças, nuveando a visão. O verbo é o que nos distingue dos animais. Ouvi alguém dizer isso. O dom de elaborar pensamentos. A perícia em construir mundos imaginários através do ato de pensar é coisa de bicho homem. Será? Vivemos todos em mundos diferentes então? Se o mundo em que vivemos é fruto do que imaginamos, poderíamos, então, construir outras formas de viver, habitar e nos relacionar? Filosofias? Mas a vida mesmo, acontece é na rua. É concreto, sabe? Aqui mesmo se cai. Ali mesmo se levanta. Se anda como se pode. Se come o que tem para comer. Ouvi alguém gritando no meio do povaréu. Queria vender bala a todo custo. Disse que poderia roubar mas disse que não queria. Então começou a pedir para que as pessoas comprassem para ajudar. Falou então que não tinha comido nada até aquela hora e que o dinheiro que ganharia ali seria para comer um pão com alguma coisa. Vendeu tudo rápido. Soube se colocar. Não bancou o coitado. Chegou com presença. Humildemente, mas com presença e dignidade. Coisas da Rua. A Palavra tem poder. Penso eu. Escrita ou pensada, tanto faz. Para mim, tem palavra que é vazia e tem outras que são cheias. Isso também depende de quem fala. Cheia é quando a própria palavra quer dizer mais do que ela é. Vazia é quando ela só diz o que ela é mesmo. E quando ela é cheia, dá pra entrar nela. Daí vai puxando outras que estão ali mesmo dentro dela. E vem uma fila grande de outras palavras. Cada uma vai enchendo mais a outra, e outra, e outra até ficar... ficando. Ás vezes as palavras brotam de sentimentos. E as vezes é o contrário. Eu gosto mais quando as elas brotam do sentir lá do fundo. Vira planta. Daí a gente cuida dela e ela cresce e se transforma. Parece que tem vida própria. Agora, tem muita palavra que é vazia mesmo. É pra colocar em nome de rua. Placa de escritório. Essas coisas. Mas também tem palavra que é, pelo som que ela produz na boca da gente. Os sons das palavras. Todas elas. Até as que não conheço, de outras línguas. É música pra mim. Palavras são fortes mesmo, elas definem muita coisa na vida da gente. Sempre me falavam coisas que não queria ouvir. Era um momento. Palavras que faziam calar. Tem palavra que corta, sabe? Era um momento difícil. Não tinha a minha expressão. Tudo que sentia ou dizia não era permitido. Essas palavras começaram impedir que outras brotassem. E logo eu já não era mais eu mesmo. Nesse momento, entende? Estava fora de mim. Tinha que ser assim? Como saber? Eu ficava em outro lugar para suportar tudo aquilo. Havia falta de compreensão.