absoluto


Vi em perspectiva o terraço. Olhei pra cima e o céu já estava púrpura. Como num relance um vulto passou por mim. Quem é? A casa estava vazia. Nada parecia estar ali. Pus as mãos na cabeça e comecei a pensar em flores, árvores, pássaros. Fiz tudo o que podia para fugir daquele momento. A imagem de um cão de boca aberta me persegue. Olhei para o horizonte e encarei a luz do sol. Não conseguia ver mais nada. Luz de mais cega a gente. Outro vulto. Entre as árvores uma sobra de mais de dois metros de cumprimento. Pude ver um caminho que levava até a rua. Um pé de lavanda me acordou com o seu cheiro cristalino. Vi suas escamas e das escamas brotaram conchas e das conchas brotavam pérolas. E das pérolas a dor. Estava sendo pulverizado. E a luz já não fazia sentido. Pois o sentido já era desconhecido. E estar já não era o bastante para saber. E o saber já não significava nada. Absolutamente o nada.

epifania

1,2,3,4...

1,2,3,4...
1,2,3,4...

torto
contra a paisagem
vejo tudo
desnudo
eterno
andar
ao vento
atento
tudo
ao meu ver

1,2,3,4...
1,2,3,4...
1,2,3,4...

o sol
desmembra
a carne
viva
célula
brilha
rebrilha
em contato
a partícula
onda
envolta
revolta
em mim

1,2,3,4...
1,2,3,4...
1,2,3,4...

acima
suspiro
fluindo
em vórtices
visões
passageiras
reveladoras
memórias
de um tempo
remoto
remonto
tudo
completo
pleno
a sabedoria
em uma
voz

1,2,3,4...
1,2,3,4...
1,2,3,4...

contemplo
meu
tempo
aquém
da aparição
desmedida
curva
ascendente
reluz
ardente
queima
e enraiza
o chão

1,2,3,4...
1,2,3,4...
1,2,3,4...

em ti
reconheço
a filha
a mãe
a medida
da tarde
que finda
em olhos
coração

1,2,3,4...
1,2,3,4...
1,2,3,4...

condenso
a rara
dúvida
no peito
na estrela
da manhã

1,2,3,4...
1,2,3,4...
1,2,3,4...

procuro-te
ciente
e construo
um horizonte
pra gente
andar

1,2,3,4...
1,2,3,4...
1,2,3,4...

nego tudo
diante
do raro
instante
tentação
flutuante
em bolas
de cor
e amor

1,2,3,4...
1,2,3,4...
1,2,3,4...

um mundo
colorido
rindo
ao redor
pulsa
a matéria
a miséria
a flor

1,2,3,4...
1,2,3,4...
1,2,3,4...

contudo
aparece
o tempo
que tudo
converte
lento
a muralha
rígida
em pó

1,2,3,4...
1,2,3,4...
1,2,3,4...

a imagem
que queremos
bela
retém
aquela
onde
a parte
aporta
o todo

1,2,3,4...
1,2,3,4...
1,2,3,4...

caminho
pela encosta
relendo
livros
indícios
de respostas
vagas
compactas
em oração

1,2,3,4...
1,2,3,4...
1,2,3,4...



















vida

recém-saído do buraco
agora conquista o mundo
de fora pra dentro
como deveria ser
e é

recém-nascido no espaço
mantém a postura altiva
no ascender e descender

o asfalto negro
que abarca vontades
abre-se em crateras minimais
de tempo e espaço
que correm à pé

num êxtase infinito
de fractais contritos
recebe as bênçãos
propagadas pelo vento

palavras recém faladas
expõem os sons dos cristais
contidos em infinitas vozes

presentes no momento do agora

proclamam: torna-te criança, e viva como a vida é!

às cegas

É que me chamaram... Não sei porque exatamente. Estou aqui faz um tempo. Isso mesmo. Não... Não queria mesmo. Mas... nem sempre se faz o que se quer não é mesmo? Eu não sei não, mas acho que a poeira está aumentando. Não acha? Olha pra aquele lado. Não queria deixar pra ir embora tão tarde assim. Depois que escurece tudo fica pior. É sim. Olha lá, já tem gente se trombando aí. Pode olhar. Vai ver. É eu falei. A poeira está aumentando. Eu sinto logo essas coisas. Começo a tossir bem de leve. Uma coisa quase imperceptível. Daí, vai aumentando aos poucos e pronto, lá vem a falta de ar. Eu não quero. Não. Já disse que não quero! Olha. Aqui já está demais pra mim. Se for mais um pouco acho que não aguento. Olha pra lá. Não aí, aqui ó! Tá vendo. Já tem gente se trombando, percebe? Não mesmo. Mas não posso ir agora. Preciso ficar mais um pouquinho só. Eu sei. É que depende do ponto de vista. Sim... Vem um pouco mais pra cá. Olha por aqui. Viu? Entendeu agora? Pode ser. Mas... até aí nada faz, concorda? Pois é, mas, se eu tivesse tido a oportunidade de ter visto antes não teria...
A questão é... o que se está buscando, entende? Mas ninguém sabe... Cof... Cof... Cof...
Tá vendo... A tosse porra!. Não te falei que quando aumenta a poeira me ataca o pulmão?
O olhos também... Mas até aí tem gente que mesmo de olho aberto não vê nada... Não brinca não. Já tive isso antes, sei do que estou falando. Já disse que ainda não posso ir.
Sim, ta fazendo mal. Só mais um pouco... Não vou morrer.
Vou sentar um pouco. Acho que estou passando mal. É... vertigem. Não... to bem, pode acreditar. Vai passar. Parece que a poeira abaixou um pouco. É sempre a essa hora que começa a tempestade. Mas é como se fosse. Todo dia é assim. Acho que nunca...
Mesmo. Eu sei que tem que pensar positivo. Mas e a realidade? Taí ó! Pra todo mundo vê. Não sou eu que quero isso. Acontece. Não sei. E te digo uma coisa: quanto mais se luta contra ela pior fica. Espera.... Preciso ficar em silêncio um pouco................
.......................................................................................
...............................................................................................................................
.....................................................
.................................................................................................................................................................................................................................................
.........................................................
.....................................................................................................................
................................Será que consigo um pouco de água por aqui? É, minha garganta................................................
.....................................
...........................
.............
....hmm......


Foi ficando tudo muito confuso na minha cabeça. De uma hora para outra. Comecei a ver. Os outros não viam. Mas pra mim estava claro, como a luz do dia. Comecei a pagar pessoas para viver a minha vida, entende? Acho que tudo começou com a vinda do meu filho. Ainda não era a hora sabe. Mas decidi que ia ser assim. Tinha dinheiro. É o que todo mundo quer, não é? Arrumei uma. Pra isso tinha empregada. Passadeira e cozinheira tinha também. Eu passava muitas horas fora de casa. Me dedicando à outras coisas. É, tentando ganhar cada vez mais dinheiro pra fazer meu pé de meia e também conseguir pagar o batalhão que eu tinha contratado. Mas um dia a fixa caiu. Cheguei em casa, já era tarde, umas dez da noite. Fui até o quarto do meu filho e ele chorava. Perguntei o que ele tinha, se estava doendo alguma coisa, ele me respondeu que estava com medo e que queria a babá. Sabe o que é isso pra uma mãe? Tudo veio como golpe certeiro no meu estômago. Na hora enjoei. Um misto de vertigem com incompreensão.

Falei com uma amiga sobre o que estava acontecendo comigo. Ela me deu o contato de um psiquiatra. Falei que não era louca pra ir em psiquiatra. Acabei indo. Disse que tinha um remédio que era tiro e queda pra esse tipo de coisa. Marquei consulta e fui. Comecei o tratamento. Tudo clareou. Parecia outra pessoa. Mas esse foi o meu problema maior. Não estava ali, sabe? Tudo parecia fazer sentido, mas lá no fundo ainda sentia um desconforto. Um incomodozinho. Não sabia dizer o que era. Quanto mais sentia isso, mais enfiava a cabeça no trabalho. Adoeci feio. Até que não aguentei mais. Joguei tudo pra cima. E esse foi o teste de fogo. Aí, tudo ruiu. Casamento desfeito. Dívidas. Processos. Acharam que eu não tinha condições de criar meu filho. Sabe o que é isso? Tiraram meu filho de mim. A única coisa que realmente era parte de mim...........................................................................
........................................................................................................................
................................................................................
....................................................................... Desculpe....
..............................................................É que é muita coisa pra mim....

Olha a poeira aumentou de novo. Cof... cof... cof.... Tá vendo eu te falei. O problema é essa poeira. Não consigo ver nada. E ainda isso me sufoca. Lenço? Eu tenho um aqui...
Vou colocar mas não adianta. Esse pó é muito fino. Passa por tudo que é lugar. Se deixar deve entrar até nos poros da gente... Não tem como escapar... Cof... cof... cof.................................................................................................
……………………………………………………..
…………………………………………..
……………………………………. Desculpa………
...................Já estamos aqui faz um tempo, não?

Friagem

Alguém me chamou. Pedindo coisa, pra variar. Bêbado, segurava a calça pra não cair. Tem um brabante aí? Não! Tem nada não. É pra podê amarrá aqui, ó! De olhos fechados, passeei com a mão por perto e achei uma tira de pano. Tem isso aí... cai fora! O desgraçado pendia de um lado a outro, parecia que o sapato, maior que o pé, estava colado ao chão. Tentava amarrar a tira de pano na cintura. A calça muito maior que o corpo dava na altura do peito. Doidera. Coisas que acontecem por aqui. Figura medonha. Cabeça raspada, cara suja, sem camisa, suado e fedendo à cachaça, foi cambaleando até uns sacos que tinha por ali e começou a escarafunchar. Com a voz que parecia vir de dentro de um balde, falou coisa em língua de bêbado. Não compreendo. Lembro de noites frias. Bebedeira. O frio aqui não poupa ninguém. Fizeram uma fogueira pra esquentar, daí aqueles caras vieram e mandaram apagar o fogo senão ia rolar paulada. Ninguém quer entrar em conflito nessas horas. Pensei que ia morrer essa noite. Na verdade, acordei achando que já estava morto. Sentia meu corpo adormecido pelo frio. Não dá pra esquecer de coisas assim. Tudo aqui é árido e frio. Se arruma de tudo pra esquentar mas parece que o frio vai entrando por tudo que é buraco e nada de esquentar. Sopa quente é bom pra essas horas. De vez em quando tem. A sorte é que sempre faz mais calor do que frio. Mas o frio é implacável. O da calça amarrada ainda estava sem camisa. Arrumou uns sacos e se enfiou dentro. Depois chegaram dois cachorros e deitaram ali do lado. A noite passou bem.

realidade

Não sabiam como lidar comigo. Eu também não sabia como lidar. Era estranho. Hoje sei que mesmo assim eu sentia amor. Compreensão maior. Sabia que tudo era só por um tempo e que de algum modo sabia de tudo. Que tudo passa e que nos arrebata de um lado para outro, dentro de nossa própria vida, mesmo sem querer. – Viver? – vivia à deriva de mim mesmo. No meio do oceano que eu mesmo construí; que ao mesmo tempo me protegia e me segregava de tudo e de todos. Me tornei naufrago dentro de mim mesmo. Naquele tempo poderia ter sido muitas coisas. Mas quanto mais eu queria colocar minha cabeça fora da água, mais me empurravam pra baixo. Sem saber, por puro bem querer, me sufocavam. Sem querer me empurravam para o mar aberto da solidão. Tudo isso vem como um turbilhão pra mim. Aprendi a conviver com a loucura dessas lembranças e ao mesmo tempo tento deixá-las lá, quietas, intactas. Mas tem momentos que preciso mexer com elas pra ver o que dizem sobre mim mesmo. Preciso saber o que eu era naquele momento pra poder saber quem eu sou agora. Sinto isso muito forte. Tento entender tudo pra poder soltar. Mas às vezes não entendo. É coisa que tem muitos lados. Tem que se dar muita volta pra se compreender. Trilhar os mesmo caminhos. Tropeçar nos mesmos pontos. Procurar ser o que se era naquele tempo. Se soltar nas sensações e sentir tudo completamente. Mas a cabeça da gente é coisa louca. Vai sabotando a gente de todos os lados. Vai minando cada novo progresso que a gente faz. Se não tomar cuidado cai na vala novamente. E fica lá sentindo todo aquele peso empurrando a gente para o fundo. E o fundo é escuro. E a água é densa. E a pressão só aumenta. Luz? Quase não se vê daí onde se está. Mas devagar a gente começa a se controlar e tirar os pesos para poder voltar à superfície para respirar. E nesse movimento de idas e voltas vou me reconstruindo. Aos poucos. Sem saber onde isso tudo vai dar. Uma grande colagem de sonhos e devaneios. É muito recorrente para mim. Sonhos, tenho sempre. Tem um que me persegue. Estou num lugar abandonado. Sujo. Sem ninguém. Nada mesmo. E daí começo a reorganizar aquilo tudo. Arranco os matos. As ervas daninhas. Retiro os lixos todos. Coloco tudo em grandes sacos pretos. E momentaneamente tudo fica bem. Mas essa sensação só dura algum tempo; logo tudo começa a brotar novamente. Numa velocidade incontrolável. E juntamente com o lixo, mato e as ervas daninhas vão surgindo bichos e insetos de todos os tipos. Alguém chega, me chama, saca um revolver e me dá três tiros. Um no peito e dois na cabeça. Desperto nessa parte. É apavorante. Sonhos. A realidade é outra coisa. Vivo aqui, mas sou diferente de todos. Aqui tem gente de todo tipo. Sabe? Gente que vai e volta. E também têm os que não voltam. Fumaça... como estava dizendo. Tudo se mistura com tudo. Nada é separado. Tem uns que estão aqui mas não estão, entende? Já tem uns que não estão, mas estão! Doidera? Não. Eu sei. Eu vejo tudo. Percebo. Outro dia mesmo, aqui. Choveu demais. E a água era muita. Alguém quis atravessar a rua. Foi rolando. Só acharam no outro dia. Se foi.
Estava fora de si. Muita gente está assim. Não está ali. Faz besteira. Não tem consciência do que está fazendo no momento. Fumaça... Fumaça... Sempre a fumaça... compreende o que digo. Água é coisa que não se consegue represar. A gente acha que consegue; mas não. Eu sei disso. Quanto mais represada ela fica mais estrago provoca. Aqui mesmo, tem muito isso. Tem gente que não vê. Mas a força é grande. Dá pra sentir. Não dá pra ignorar. A gente sabe que se soltasse tudo isso aí não sobrava nada. Ninguém mesmo. Inundava tudo. É muita coisa junta querendo vazar. Quando o volume aumenta demais os ralos já não dão conta. Tem muito lixo; muita merda. Insetos. Muitos deles. Brotam por todo lado. Piora muito à noite. Tento dormir. Não bastasse o barulho aqui, ainda tem sem esses bichos. Vou matando um por um. Sem dó. Pisando assim. Chego a sentir o pé deslizando na gosma deles. Tem de todos os tipos. Piso. Bato. Amasso. Arrasto. Mas não adianta. Parece que surgem pra me testar. Sim. Testar minha resistência ao asqueroso do mundo. A parte que anda com muitas pernas. Que vê com muitos olhos. Que rasteja em muita lama. Quero sair daqui, não suporto isso. Não tenho estrutura pra lidar com esta realidade. Não tenho estomago. Mas é o que tenho de mais concreto. É isso aqui. Tudo desse jeito mesmo. Como está agora. Mas se eu pudesse revirava tudo de cabeça pra baixo. Outra realidade.

novelo

Frases, palavras, letras, tudo vai fluindo como num novelo; tudo é parte da mesma chuva.Tudo é líquido. A água é a mesma. Desde sempre. Nuvens da mesma era. Fumaça de água sobre nossas cabeças, nuveando a visão. O verbo é o que nos distingue dos animais. Ouvi alguém dizer isso. O dom de elaborar pensamentos. A perícia em construir mundos imaginários através do ato de pensar é coisa de bicho homem. Será? Vivemos todos em mundos diferentes então? Se o mundo em que vivemos é fruto do que imaginamos, poderíamos, então, construir outras formas de viver, habitar e nos relacionar? Filosofias? Mas a vida mesmo, acontece é na rua. É concreto, sabe? Aqui mesmo se cai. Ali mesmo se levanta. Se anda como se pode. Se come o que tem para comer. Ouvi alguém gritando no meio do povaréu. Queria vender bala a todo custo. Disse que poderia roubar mas disse que não queria. Então começou a pedir para que as pessoas comprassem para ajudar. Falou então que não tinha comido nada até aquela hora e que o dinheiro que ganharia ali seria para comer um pão com alguma coisa. Vendeu tudo rápido. Soube se colocar. Não bancou o coitado. Chegou com presença. Humildemente, mas com presença e dignidade. Coisas da Rua. A Palavra tem poder. Penso eu. Escrita ou pensada, tanto faz. Para mim, tem palavra que é vazia e tem outras que são cheias. Isso também depende de quem fala. Cheia é quando a própria palavra quer dizer mais do que ela é. Vazia é quando ela só diz o que ela é mesmo. E quando ela é cheia, dá pra entrar nela. Daí vai puxando outras que estão ali mesmo dentro dela. E vem uma fila grande de outras palavras. Cada uma vai enchendo mais a outra, e outra, e outra até ficar... ficando. Ás vezes as palavras brotam de sentimentos. E as vezes é o contrário. Eu gosto mais quando as elas brotam do sentir lá do fundo. Vira planta. Daí a gente cuida dela e ela cresce e se transforma. Parece que tem vida própria. Agora, tem muita palavra que é vazia mesmo. É pra colocar em nome de rua. Placa de escritório. Essas coisas. Mas também tem palavra que é, pelo som que ela produz na boca da gente. Os sons das palavras. Todas elas. Até as que não conheço, de outras línguas. É música pra mim. Palavras são fortes mesmo, elas definem muita coisa na vida da gente. Sempre me falavam coisas que não queria ouvir. Era um momento. Palavras que faziam calar. Tem palavra que corta, sabe? Era um momento difícil. Não tinha a minha expressão. Tudo que sentia ou dizia não era permitido. Essas palavras começaram impedir que outras brotassem. E logo eu já não era mais eu mesmo. Nesse momento, entende? Estava fora de mim. Tinha que ser assim? Como saber? Eu ficava em outro lugar para suportar tudo aquilo. Havia falta de compreensão.