realidade

Não sabiam como lidar comigo. Eu também não sabia como lidar. Era estranho. Hoje sei que mesmo assim eu sentia amor. Compreensão maior. Sabia que tudo era só por um tempo e que de algum modo sabia de tudo. Que tudo passa e que nos arrebata de um lado para outro, dentro de nossa própria vida, mesmo sem querer. – Viver? – vivia à deriva de mim mesmo. No meio do oceano que eu mesmo construí; que ao mesmo tempo me protegia e me segregava de tudo e de todos. Me tornei naufrago dentro de mim mesmo. Naquele tempo poderia ter sido muitas coisas. Mas quanto mais eu queria colocar minha cabeça fora da água, mais me empurravam pra baixo. Sem saber, por puro bem querer, me sufocavam. Sem querer me empurravam para o mar aberto da solidão. Tudo isso vem como um turbilhão pra mim. Aprendi a conviver com a loucura dessas lembranças e ao mesmo tempo tento deixá-las lá, quietas, intactas. Mas tem momentos que preciso mexer com elas pra ver o que dizem sobre mim mesmo. Preciso saber o que eu era naquele momento pra poder saber quem eu sou agora. Sinto isso muito forte. Tento entender tudo pra poder soltar. Mas às vezes não entendo. É coisa que tem muitos lados. Tem que se dar muita volta pra se compreender. Trilhar os mesmo caminhos. Tropeçar nos mesmos pontos. Procurar ser o que se era naquele tempo. Se soltar nas sensações e sentir tudo completamente. Mas a cabeça da gente é coisa louca. Vai sabotando a gente de todos os lados. Vai minando cada novo progresso que a gente faz. Se não tomar cuidado cai na vala novamente. E fica lá sentindo todo aquele peso empurrando a gente para o fundo. E o fundo é escuro. E a água é densa. E a pressão só aumenta. Luz? Quase não se vê daí onde se está. Mas devagar a gente começa a se controlar e tirar os pesos para poder voltar à superfície para respirar. E nesse movimento de idas e voltas vou me reconstruindo. Aos poucos. Sem saber onde isso tudo vai dar. Uma grande colagem de sonhos e devaneios. É muito recorrente para mim. Sonhos, tenho sempre. Tem um que me persegue. Estou num lugar abandonado. Sujo. Sem ninguém. Nada mesmo. E daí começo a reorganizar aquilo tudo. Arranco os matos. As ervas daninhas. Retiro os lixos todos. Coloco tudo em grandes sacos pretos. E momentaneamente tudo fica bem. Mas essa sensação só dura algum tempo; logo tudo começa a brotar novamente. Numa velocidade incontrolável. E juntamente com o lixo, mato e as ervas daninhas vão surgindo bichos e insetos de todos os tipos. Alguém chega, me chama, saca um revolver e me dá três tiros. Um no peito e dois na cabeça. Desperto nessa parte. É apavorante. Sonhos. A realidade é outra coisa. Vivo aqui, mas sou diferente de todos. Aqui tem gente de todo tipo. Sabe? Gente que vai e volta. E também têm os que não voltam. Fumaça... como estava dizendo. Tudo se mistura com tudo. Nada é separado. Tem uns que estão aqui mas não estão, entende? Já tem uns que não estão, mas estão! Doidera? Não. Eu sei. Eu vejo tudo. Percebo. Outro dia mesmo, aqui. Choveu demais. E a água era muita. Alguém quis atravessar a rua. Foi rolando. Só acharam no outro dia. Se foi.
Estava fora de si. Muita gente está assim. Não está ali. Faz besteira. Não tem consciência do que está fazendo no momento. Fumaça... Fumaça... Sempre a fumaça... compreende o que digo. Água é coisa que não se consegue represar. A gente acha que consegue; mas não. Eu sei disso. Quanto mais represada ela fica mais estrago provoca. Aqui mesmo, tem muito isso. Tem gente que não vê. Mas a força é grande. Dá pra sentir. Não dá pra ignorar. A gente sabe que se soltasse tudo isso aí não sobrava nada. Ninguém mesmo. Inundava tudo. É muita coisa junta querendo vazar. Quando o volume aumenta demais os ralos já não dão conta. Tem muito lixo; muita merda. Insetos. Muitos deles. Brotam por todo lado. Piora muito à noite. Tento dormir. Não bastasse o barulho aqui, ainda tem sem esses bichos. Vou matando um por um. Sem dó. Pisando assim. Chego a sentir o pé deslizando na gosma deles. Tem de todos os tipos. Piso. Bato. Amasso. Arrasto. Mas não adianta. Parece que surgem pra me testar. Sim. Testar minha resistência ao asqueroso do mundo. A parte que anda com muitas pernas. Que vê com muitos olhos. Que rasteja em muita lama. Quero sair daqui, não suporto isso. Não tenho estrutura pra lidar com esta realidade. Não tenho estomago. Mas é o que tenho de mais concreto. É isso aqui. Tudo desse jeito mesmo. Como está agora. Mas se eu pudesse revirava tudo de cabeça pra baixo. Outra realidade.

novelo

Frases, palavras, letras, tudo vai fluindo como num novelo; tudo é parte da mesma chuva.Tudo é líquido. A água é a mesma. Desde sempre. Nuvens da mesma era. Fumaça de água sobre nossas cabeças, nuveando a visão. O verbo é o que nos distingue dos animais. Ouvi alguém dizer isso. O dom de elaborar pensamentos. A perícia em construir mundos imaginários através do ato de pensar é coisa de bicho homem. Será? Vivemos todos em mundos diferentes então? Se o mundo em que vivemos é fruto do que imaginamos, poderíamos, então, construir outras formas de viver, habitar e nos relacionar? Filosofias? Mas a vida mesmo, acontece é na rua. É concreto, sabe? Aqui mesmo se cai. Ali mesmo se levanta. Se anda como se pode. Se come o que tem para comer. Ouvi alguém gritando no meio do povaréu. Queria vender bala a todo custo. Disse que poderia roubar mas disse que não queria. Então começou a pedir para que as pessoas comprassem para ajudar. Falou então que não tinha comido nada até aquela hora e que o dinheiro que ganharia ali seria para comer um pão com alguma coisa. Vendeu tudo rápido. Soube se colocar. Não bancou o coitado. Chegou com presença. Humildemente, mas com presença e dignidade. Coisas da Rua. A Palavra tem poder. Penso eu. Escrita ou pensada, tanto faz. Para mim, tem palavra que é vazia e tem outras que são cheias. Isso também depende de quem fala. Cheia é quando a própria palavra quer dizer mais do que ela é. Vazia é quando ela só diz o que ela é mesmo. E quando ela é cheia, dá pra entrar nela. Daí vai puxando outras que estão ali mesmo dentro dela. E vem uma fila grande de outras palavras. Cada uma vai enchendo mais a outra, e outra, e outra até ficar... ficando. Ás vezes as palavras brotam de sentimentos. E as vezes é o contrário. Eu gosto mais quando as elas brotam do sentir lá do fundo. Vira planta. Daí a gente cuida dela e ela cresce e se transforma. Parece que tem vida própria. Agora, tem muita palavra que é vazia mesmo. É pra colocar em nome de rua. Placa de escritório. Essas coisas. Mas também tem palavra que é, pelo som que ela produz na boca da gente. Os sons das palavras. Todas elas. Até as que não conheço, de outras línguas. É música pra mim. Palavras são fortes mesmo, elas definem muita coisa na vida da gente. Sempre me falavam coisas que não queria ouvir. Era um momento. Palavras que faziam calar. Tem palavra que corta, sabe? Era um momento difícil. Não tinha a minha expressão. Tudo que sentia ou dizia não era permitido. Essas palavras começaram impedir que outras brotassem. E logo eu já não era mais eu mesmo. Nesse momento, entende? Estava fora de mim. Tinha que ser assim? Como saber? Eu ficava em outro lugar para suportar tudo aquilo. Havia falta de compreensão.

nau

Nuvens pesadas
Pressionam tudo contra o chão
Desbotam tudo o que tem cor
Nuvens metálicas
De peso infinito
Nuvens sutis
Flutuam no céu
Navios náufragos
Caravelas a favor do vento
Aqui embaixo
Tudo é naufrágio
Nau
au
u