vida

recém-saído do buraco
agora conquista o mundo
de fora pra dentro
como deveria ser
e é

recém-nascido no espaço
mantém a postura altiva
no ascender e descender

o asfalto negro
que abarca vontades
abre-se em crateras minimais
de tempo e espaço
que correm à pé

num êxtase infinito
de fractais contritos
recebe as bênçãos
propagadas pelo vento

palavras recém faladas
expõem os sons dos cristais
contidos em infinitas vozes

presentes no momento do agora

proclamam: torna-te criança, e viva como a vida é!

às cegas

É que me chamaram... Não sei porque exatamente. Estou aqui faz um tempo. Isso mesmo. Não... Não queria mesmo. Mas... nem sempre se faz o que se quer não é mesmo? Eu não sei não, mas acho que a poeira está aumentando. Não acha? Olha pra aquele lado. Não queria deixar pra ir embora tão tarde assim. Depois que escurece tudo fica pior. É sim. Olha lá, já tem gente se trombando aí. Pode olhar. Vai ver. É eu falei. A poeira está aumentando. Eu sinto logo essas coisas. Começo a tossir bem de leve. Uma coisa quase imperceptível. Daí, vai aumentando aos poucos e pronto, lá vem a falta de ar. Eu não quero. Não. Já disse que não quero! Olha. Aqui já está demais pra mim. Se for mais um pouco acho que não aguento. Olha pra lá. Não aí, aqui ó! Tá vendo. Já tem gente se trombando, percebe? Não mesmo. Mas não posso ir agora. Preciso ficar mais um pouquinho só. Eu sei. É que depende do ponto de vista. Sim... Vem um pouco mais pra cá. Olha por aqui. Viu? Entendeu agora? Pode ser. Mas... até aí nada faz, concorda? Pois é, mas, se eu tivesse tido a oportunidade de ter visto antes não teria...
A questão é... o que se está buscando, entende? Mas ninguém sabe... Cof... Cof... Cof...
Tá vendo... A tosse porra!. Não te falei que quando aumenta a poeira me ataca o pulmão?
O olhos também... Mas até aí tem gente que mesmo de olho aberto não vê nada... Não brinca não. Já tive isso antes, sei do que estou falando. Já disse que ainda não posso ir.
Sim, ta fazendo mal. Só mais um pouco... Não vou morrer.
Vou sentar um pouco. Acho que estou passando mal. É... vertigem. Não... to bem, pode acreditar. Vai passar. Parece que a poeira abaixou um pouco. É sempre a essa hora que começa a tempestade. Mas é como se fosse. Todo dia é assim. Acho que nunca...
Mesmo. Eu sei que tem que pensar positivo. Mas e a realidade? Taí ó! Pra todo mundo vê. Não sou eu que quero isso. Acontece. Não sei. E te digo uma coisa: quanto mais se luta contra ela pior fica. Espera.... Preciso ficar em silêncio um pouco................
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................................Será que consigo um pouco de água por aqui? É, minha garganta................................................
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....hmm......


Foi ficando tudo muito confuso na minha cabeça. De uma hora para outra. Comecei a ver. Os outros não viam. Mas pra mim estava claro, como a luz do dia. Comecei a pagar pessoas para viver a minha vida, entende? Acho que tudo começou com a vinda do meu filho. Ainda não era a hora sabe. Mas decidi que ia ser assim. Tinha dinheiro. É o que todo mundo quer, não é? Arrumei uma. Pra isso tinha empregada. Passadeira e cozinheira tinha também. Eu passava muitas horas fora de casa. Me dedicando à outras coisas. É, tentando ganhar cada vez mais dinheiro pra fazer meu pé de meia e também conseguir pagar o batalhão que eu tinha contratado. Mas um dia a fixa caiu. Cheguei em casa, já era tarde, umas dez da noite. Fui até o quarto do meu filho e ele chorava. Perguntei o que ele tinha, se estava doendo alguma coisa, ele me respondeu que estava com medo e que queria a babá. Sabe o que é isso pra uma mãe? Tudo veio como golpe certeiro no meu estômago. Na hora enjoei. Um misto de vertigem com incompreensão.

Falei com uma amiga sobre o que estava acontecendo comigo. Ela me deu o contato de um psiquiatra. Falei que não era louca pra ir em psiquiatra. Acabei indo. Disse que tinha um remédio que era tiro e queda pra esse tipo de coisa. Marquei consulta e fui. Comecei o tratamento. Tudo clareou. Parecia outra pessoa. Mas esse foi o meu problema maior. Não estava ali, sabe? Tudo parecia fazer sentido, mas lá no fundo ainda sentia um desconforto. Um incomodozinho. Não sabia dizer o que era. Quanto mais sentia isso, mais enfiava a cabeça no trabalho. Adoeci feio. Até que não aguentei mais. Joguei tudo pra cima. E esse foi o teste de fogo. Aí, tudo ruiu. Casamento desfeito. Dívidas. Processos. Acharam que eu não tinha condições de criar meu filho. Sabe o que é isso? Tiraram meu filho de mim. A única coisa que realmente era parte de mim...........................................................................
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....................................................................... Desculpe....
..............................................................É que é muita coisa pra mim....

Olha a poeira aumentou de novo. Cof... cof... cof.... Tá vendo eu te falei. O problema é essa poeira. Não consigo ver nada. E ainda isso me sufoca. Lenço? Eu tenho um aqui...
Vou colocar mas não adianta. Esse pó é muito fino. Passa por tudo que é lugar. Se deixar deve entrar até nos poros da gente... Não tem como escapar... Cof... cof... cof.................................................................................................
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……………………………………. Desculpa………
...................Já estamos aqui faz um tempo, não?

Friagem

Alguém me chamou. Pedindo coisa, pra variar. Bêbado, segurava a calça pra não cair. Tem um brabante aí? Não! Tem nada não. É pra podê amarrá aqui, ó! De olhos fechados, passeei com a mão por perto e achei uma tira de pano. Tem isso aí... cai fora! O desgraçado pendia de um lado a outro, parecia que o sapato, maior que o pé, estava colado ao chão. Tentava amarrar a tira de pano na cintura. A calça muito maior que o corpo dava na altura do peito. Doidera. Coisas que acontecem por aqui. Figura medonha. Cabeça raspada, cara suja, sem camisa, suado e fedendo à cachaça, foi cambaleando até uns sacos que tinha por ali e começou a escarafunchar. Com a voz que parecia vir de dentro de um balde, falou coisa em língua de bêbado. Não compreendo. Lembro de noites frias. Bebedeira. O frio aqui não poupa ninguém. Fizeram uma fogueira pra esquentar, daí aqueles caras vieram e mandaram apagar o fogo senão ia rolar paulada. Ninguém quer entrar em conflito nessas horas. Pensei que ia morrer essa noite. Na verdade, acordei achando que já estava morto. Sentia meu corpo adormecido pelo frio. Não dá pra esquecer de coisas assim. Tudo aqui é árido e frio. Se arruma de tudo pra esquentar mas parece que o frio vai entrando por tudo que é buraco e nada de esquentar. Sopa quente é bom pra essas horas. De vez em quando tem. A sorte é que sempre faz mais calor do que frio. Mas o frio é implacável. O da calça amarrada ainda estava sem camisa. Arrumou uns sacos e se enfiou dentro. Depois chegaram dois cachorros e deitaram ali do lado. A noite passou bem.

realidade

Não sabiam como lidar comigo. Eu também não sabia como lidar. Era estranho. Hoje sei que mesmo assim eu sentia amor. Compreensão maior. Sabia que tudo era só por um tempo e que de algum modo sabia de tudo. Que tudo passa e que nos arrebata de um lado para outro, dentro de nossa própria vida, mesmo sem querer. – Viver? – vivia à deriva de mim mesmo. No meio do oceano que eu mesmo construí; que ao mesmo tempo me protegia e me segregava de tudo e de todos. Me tornei naufrago dentro de mim mesmo. Naquele tempo poderia ter sido muitas coisas. Mas quanto mais eu queria colocar minha cabeça fora da água, mais me empurravam pra baixo. Sem saber, por puro bem querer, me sufocavam. Sem querer me empurravam para o mar aberto da solidão. Tudo isso vem como um turbilhão pra mim. Aprendi a conviver com a loucura dessas lembranças e ao mesmo tempo tento deixá-las lá, quietas, intactas. Mas tem momentos que preciso mexer com elas pra ver o que dizem sobre mim mesmo. Preciso saber o que eu era naquele momento pra poder saber quem eu sou agora. Sinto isso muito forte. Tento entender tudo pra poder soltar. Mas às vezes não entendo. É coisa que tem muitos lados. Tem que se dar muita volta pra se compreender. Trilhar os mesmo caminhos. Tropeçar nos mesmos pontos. Procurar ser o que se era naquele tempo. Se soltar nas sensações e sentir tudo completamente. Mas a cabeça da gente é coisa louca. Vai sabotando a gente de todos os lados. Vai minando cada novo progresso que a gente faz. Se não tomar cuidado cai na vala novamente. E fica lá sentindo todo aquele peso empurrando a gente para o fundo. E o fundo é escuro. E a água é densa. E a pressão só aumenta. Luz? Quase não se vê daí onde se está. Mas devagar a gente começa a se controlar e tirar os pesos para poder voltar à superfície para respirar. E nesse movimento de idas e voltas vou me reconstruindo. Aos poucos. Sem saber onde isso tudo vai dar. Uma grande colagem de sonhos e devaneios. É muito recorrente para mim. Sonhos, tenho sempre. Tem um que me persegue. Estou num lugar abandonado. Sujo. Sem ninguém. Nada mesmo. E daí começo a reorganizar aquilo tudo. Arranco os matos. As ervas daninhas. Retiro os lixos todos. Coloco tudo em grandes sacos pretos. E momentaneamente tudo fica bem. Mas essa sensação só dura algum tempo; logo tudo começa a brotar novamente. Numa velocidade incontrolável. E juntamente com o lixo, mato e as ervas daninhas vão surgindo bichos e insetos de todos os tipos. Alguém chega, me chama, saca um revolver e me dá três tiros. Um no peito e dois na cabeça. Desperto nessa parte. É apavorante. Sonhos. A realidade é outra coisa. Vivo aqui, mas sou diferente de todos. Aqui tem gente de todo tipo. Sabe? Gente que vai e volta. E também têm os que não voltam. Fumaça... como estava dizendo. Tudo se mistura com tudo. Nada é separado. Tem uns que estão aqui mas não estão, entende? Já tem uns que não estão, mas estão! Doidera? Não. Eu sei. Eu vejo tudo. Percebo. Outro dia mesmo, aqui. Choveu demais. E a água era muita. Alguém quis atravessar a rua. Foi rolando. Só acharam no outro dia. Se foi.
Estava fora de si. Muita gente está assim. Não está ali. Faz besteira. Não tem consciência do que está fazendo no momento. Fumaça... Fumaça... Sempre a fumaça... compreende o que digo. Água é coisa que não se consegue represar. A gente acha que consegue; mas não. Eu sei disso. Quanto mais represada ela fica mais estrago provoca. Aqui mesmo, tem muito isso. Tem gente que não vê. Mas a força é grande. Dá pra sentir. Não dá pra ignorar. A gente sabe que se soltasse tudo isso aí não sobrava nada. Ninguém mesmo. Inundava tudo. É muita coisa junta querendo vazar. Quando o volume aumenta demais os ralos já não dão conta. Tem muito lixo; muita merda. Insetos. Muitos deles. Brotam por todo lado. Piora muito à noite. Tento dormir. Não bastasse o barulho aqui, ainda tem sem esses bichos. Vou matando um por um. Sem dó. Pisando assim. Chego a sentir o pé deslizando na gosma deles. Tem de todos os tipos. Piso. Bato. Amasso. Arrasto. Mas não adianta. Parece que surgem pra me testar. Sim. Testar minha resistência ao asqueroso do mundo. A parte que anda com muitas pernas. Que vê com muitos olhos. Que rasteja em muita lama. Quero sair daqui, não suporto isso. Não tenho estrutura pra lidar com esta realidade. Não tenho estomago. Mas é o que tenho de mais concreto. É isso aqui. Tudo desse jeito mesmo. Como está agora. Mas se eu pudesse revirava tudo de cabeça pra baixo. Outra realidade.

novelo

Frases, palavras, letras, tudo vai fluindo como num novelo; tudo é parte da mesma chuva.Tudo é líquido. A água é a mesma. Desde sempre. Nuvens da mesma era. Fumaça de água sobre nossas cabeças, nuveando a visão. O verbo é o que nos distingue dos animais. Ouvi alguém dizer isso. O dom de elaborar pensamentos. A perícia em construir mundos imaginários através do ato de pensar é coisa de bicho homem. Será? Vivemos todos em mundos diferentes então? Se o mundo em que vivemos é fruto do que imaginamos, poderíamos, então, construir outras formas de viver, habitar e nos relacionar? Filosofias? Mas a vida mesmo, acontece é na rua. É concreto, sabe? Aqui mesmo se cai. Ali mesmo se levanta. Se anda como se pode. Se come o que tem para comer. Ouvi alguém gritando no meio do povaréu. Queria vender bala a todo custo. Disse que poderia roubar mas disse que não queria. Então começou a pedir para que as pessoas comprassem para ajudar. Falou então que não tinha comido nada até aquela hora e que o dinheiro que ganharia ali seria para comer um pão com alguma coisa. Vendeu tudo rápido. Soube se colocar. Não bancou o coitado. Chegou com presença. Humildemente, mas com presença e dignidade. Coisas da Rua. A Palavra tem poder. Penso eu. Escrita ou pensada, tanto faz. Para mim, tem palavra que é vazia e tem outras que são cheias. Isso também depende de quem fala. Cheia é quando a própria palavra quer dizer mais do que ela é. Vazia é quando ela só diz o que ela é mesmo. E quando ela é cheia, dá pra entrar nela. Daí vai puxando outras que estão ali mesmo dentro dela. E vem uma fila grande de outras palavras. Cada uma vai enchendo mais a outra, e outra, e outra até ficar... ficando. Ás vezes as palavras brotam de sentimentos. E as vezes é o contrário. Eu gosto mais quando as elas brotam do sentir lá do fundo. Vira planta. Daí a gente cuida dela e ela cresce e se transforma. Parece que tem vida própria. Agora, tem muita palavra que é vazia mesmo. É pra colocar em nome de rua. Placa de escritório. Essas coisas. Mas também tem palavra que é, pelo som que ela produz na boca da gente. Os sons das palavras. Todas elas. Até as que não conheço, de outras línguas. É música pra mim. Palavras são fortes mesmo, elas definem muita coisa na vida da gente. Sempre me falavam coisas que não queria ouvir. Era um momento. Palavras que faziam calar. Tem palavra que corta, sabe? Era um momento difícil. Não tinha a minha expressão. Tudo que sentia ou dizia não era permitido. Essas palavras começaram impedir que outras brotassem. E logo eu já não era mais eu mesmo. Nesse momento, entende? Estava fora de mim. Tinha que ser assim? Como saber? Eu ficava em outro lugar para suportar tudo aquilo. Havia falta de compreensão.

nau

Nuvens pesadas
Pressionam tudo contra o chão
Desbotam tudo o que tem cor
Nuvens metálicas
De peso infinito
Nuvens sutis
Flutuam no céu
Navios náufragos
Caravelas a favor do vento
Aqui embaixo
Tudo é naufrágio
Nau
au
u

noturno

Mas para mim o bom é nunca ser vento revolto que traz a chuva forte, que destrói. Vento forte é bom também. Mas mexe muito com as coisas da gente. Gosto de chover de noite. Enquanto chove, eu chovo também. Chuva da noite acalma os medos da gente. Medo do que não se vê. Do que já está além da fumaça negra. E tudo que quero da noite é que ela traga o outro dia. Um dia novo, descansado. Às vezes, no escuro tudo fica claro, entende? Mesmo quando se está na cidade. Mesmo aqui onde estou. Aqui é seguro, pelo medo que os outros têm. Mas o medo, se tem mesmo assim. Medo do que não é ainda. E do que está escondido. Bem ali. E não se sabe. Pois não se conhece o que é claramente, percebe? Ontem ouvi tiros perto daqui. Achei que fossem fogos. Mas pelo barulho seco da explosão, era tiro mesmo. Logo depois muitos carros de polícia chegaram. Correria. Roubaram um carro, parece. Na fuga, bateram. Já saíram atirando nos guardas. Parece que mataram alguém. A gente pensa que tem segurança. Isso é coisa que não existe. Mesmo a gente, nessa condição, a violência fica perto. Só rondando. Encontrando a primeira oportunidade para se manifestar. Sempre pensei que a violência é coisa que está no ar. A gente não vê, mas sente de longe. Fumaça; como falei.
De tudo já passei em muitas noites, em dias também. Ver o outro que está ali, próximo , passando por tudo aquilo também. A vida traz a incerteza para o espírito compreender tudo. Mas às vezes não entendo. E nessa hora a gente se revolta por não compreender nada da vida. Daí a gente começa a querer falar pra dentro da gente mesmo. E então encontra as tristezas que estão lá no fundo. Daquelas que não deixa a voz sair. Daí a gente vai ficando mudo de tanta tristeza quem tem. Não consegue mais falar. E vai ficando de lado. Tão de lado que quem passa perto, já não vê. O fazer parte é difícil. Não cabe. Tem coisa que não encaixa com a gente. Não adianta. Daí tem que buscar lá dentro, mergulhando, cada vez mais fundo, vai vendo o que estava perdido. Assim dessa forma; com mão. Como se se pudesse enfiar a mão no oco do peito e trazer tudo a tona. Examinar. Olhar bem no detalhe. E depois a gente se acha louco de ver o que não via. Loucura é coisa que dá em gente que pensa de mais. Aqui, vejo gente que pensa muito, mas não pensa as coisas que eu penso, sabe? É diferente. Mas de quê serve pensar o diferente. Esta é uma realidade que não se sustenta. Dor se sente. Muita. Quem vê de longe acha que não se sente nada. Que é tudo igual, uma massa de gente, perdida, que não sabe pra quê existir. Mas não. Eu sei o que sinto. Lá dentro. Eu sei o que é que eu tenho que falar. Mas às vezes até acho que não sou eu que estou falando. Que é outro falando por mim. É assim também o sentimento. Às vezes se sente o que não é seu. Sentimento que está no ar, como já disse. Pega você desprevenido. Entra pelo peito da gente. De repente você pega a sentir tristeza e não sabe por quê. Tem que ter atenção nesses assuntos de sentimento. Colocar atenção onde se respira. É coisa que está no ar. Você sente? O ar vai ficando pesado, e é aí onde tudo começa. Tem que saber por onde se respira também. Sou louco? Talvez. Mas eu não respiro em qualquer lugar. O calor é forte. Não se tem lugar pra ficar bem. Logo de manhã já está impossível. O dia vai passando e vai piorando. Tanto que da vontade de se refrescar. Aí vem um pessoal aqui perto e abre a torneira. Inventam de tomar banho aqui mesmo. Ficam só de calção. Todos passando, olhando. Fazem assim mesmo. É quente demais, aqui. Tem uns que já aproveitam pra lavar as roupas. Outros fazem barba. É assim que é. O calor aumenta. A pressão sobre. Tudo fica insuportável. Quando está assim saio e procuro um outro lugar. Gosto de sentar debaixo das árvores; sentir a brisa. Um refúgio, sabe. É mais leve pra mim. O ser humano é assim. Parece que todos se juntam pra brigar. Estresse. Como falei. É muito quente e a pressão de tudo aumenta.

chuvas

Chuvas. Pensamento. No final das contas tudo chove um pouco. E tudo escorre. E tudo vai pelo ralo. A água é interessante, me faz lembrar de como tudo escorre e acaba virando uma coisa só. Imaginação é como água que corre na enxurrada. Vai rolando, rolando, levando tudo que encontra pela frente pra dentro de rio. E o rio vai correndo, inundando tudo até que chega no mar. Mar de pensamentos. E depois de tudo, evapora, vira nuvem novamente. Mar de nuvens. Esponja de fumaça branca cheia de água. E quando a gente olha nem imagina, que, mesmo a gente querendo a água delas naquele exato momento, não se pode pegar. Pra se trazer a água de chuva tem que se imaginar muito forte elas vindo para terra. E daí é bonito. Eu acho. Ver a chuva caindo em véu, cobrindo a cidade. E ela vem e molha tudo. Todos. Sem perguntar quem merece ou não.

fome

Já era dia e a lua, persistente, flutuava em meio a poeira e nuvens. Foi o que vi quando acordei. Uma bituca de cigarro brevemente pisada ainda lançava seus fios contra a luz. A rua anunciava cheiro de fome. Gosto de escrever assim. Parecendo que vai ser publicado em livro. Mas a fome. Era do que eu falava. Fome é coisa que faz a gente pensar. Penso sempre em quem pode estar pior. Sempre me lembro das crianças da África. Não sei bem onde é. Mas é muita fome junta. A fome parece tão grande que as vezes eu acho que aquele povo nem quer mais comer. Se esqueceu o que é comida. Mas aqui é diferente. As pessoas têm fome, mas sempre tem onde encontrar um de comer. Sempre se encontra alguma coisa. Mas a fome é coisa que sempre se tem. Começa em baixo e quando passa pelo estômago abre um buraco, parece. Até dói. E devagar você percebe que sua cabeça começa a ficar zonza. E daí não consegue mais pensar. Beber, às vezes, faz a gente esquecer da fome. Dormir também; às vezes. Mas tem que ser bebida forte. Porque água não mata fome não. E o pensamento vai. E passa por cada coisa que a gente até desconfia que não está mais ali. E quando a gente cai em si, já foi. Coisas do pensamento. Pensamento é coisa selvagem. É um bicho estranho. Parece formiga quando encontra coisas. Uma vai chamando a outra e quando se vê tem aquele monte de formiga juntas. Todas trabalhando em equipe pra resolver aquele problema. Mas pensamento é pior. Parece que tem sempre migalha caindo. E sempre vai juntando mais. Não pára. Pra domar os pensamentos tem de escrever. Escrever é coisa que tira a fome também. Outro dia mesmo acordei com fome; olhei pro céu e choveu pensamento.

desmatéria

Meu despertador é a fumaça.
O barulho nem me incomoda mais. Mas a fumaça é diferente.
Ela vem, devagar, começa bem aqui perto, aqui do lado, bem no meio da rua e quando a gente vê já está tomando conta de tudo. Tem gente que já não percebe. A gente se acostuma com tudo mesmo. Mas pra mim é diferente. Conheço todos os tipos de cheiro de fumaça; de carro, caminhão, cigarro, pneu queimado, fábrica, cinza de caixa de papelão. No fim, todas elas se juntam numa única massa. Enorme. E como que revestidos de um véu macabro, respiramos tudo isso. Homem, mulher, rico, pobre, criança, velho, cachorro, gato, rato, mendigo; ninguém escapa. E bem devagar, essa desmaterialização que vai transformando todos, um pouquinho a cada dia, em ferro, pedra, papel... Fumaça.

diamente

fluidos
diamantes
tilintam
vértices
equidistantes

o devir anunciado
refrações
reflexões

a luz

a mente
lapidada
em ângulos
contem olhares
difração
brilhos
antigos
escoam
em vórtices magnéticos
a certeza
do ser perene

anêmona

vejo-a
viva
vagando
alma
alva
alta
em voo
lívido
altivo
à espera
revelação maior
seu manto
fios de luzes
multicores
tremula
movimentos astrais
malha amorfa
anêmona
o óvulo
o esperma
o espaço
o vazio

às cegas

tateio
às cegas
as camadas
sobrepostas
do horizonte
escuto
atento
a natureza da luz
amanheço a retina
na desintegração das formas
em tons cinza-violáceos
elíptico
sinto-me em rota de colisão

fotossintéticos

a palavra
lavra
o terreno
fértil
do pensar

livra-nos
das intempéries
do viver

a palavra
vala
rasga o solo
e aterra

em seus sulcos
brotamos
crescemos
enraizados
em novas estruturas

sementessentimento
caulesfrasais
galhosilabicos
folhasconsoantevocálicas
em busca da consciência solar

fotossintéticamente

somos
verbo

alma líquida

o céu
em alvos
tufos cinzentos
revela
a alma líquida
no interior recôndito
do sentir

do peito
escorre
lenta
a dor
sedimentada
nas encostas
das entranhas

tudo é pó
tudo é água
tudo esvai-se
como fumaça branca
por entre
a trama
do existir

alvo

o manto da morte
desnuda
a carne sedenta
morro em ti
em jorros de lava
elevação
me desdobro
nas dobras do tempoespaço
mil faces se apresentam
um ponto azul
no quadrante sul
da esfera celeste
se revela
sagas sagitas
ser
flecha
arco
arqueiro
e alvo

distante

tudo surge
como num encanto
o amor
fica maior
a presença
já não está
o coração sabe
e reconhece
cada momento
distante
um olhar
um adeus
um acenar
tudo faz parte
uma canção
traz folhas secas
de outra estação
momentos não vividos
o tempo
estanque
em ondas
imóveis

véu

vozes noturnas

imprimem
seus rostos
contra o véu da escuridão
observam meu leito
a morte é iminente
olho
o corpo
inerte
sonhando a realidade





tempestade solar

ando pela camada
granulosa
da consciência solar
o pulsar
radioativo
destrói
retalha
em partes
a luz
erupções
radiomagnetoeletrotudo
atração
asteróides
bombardeios constantes
atmosfera (in) visível
explosão
partículas
brilhantes
fotosfera
coração
esguicho atômico
labaredas
camadas sensoriais imperceptíveis
desafio à razão

observatório

Ophiuchus
Lyra
Fornax

distam

Octans
Mensa
Musca

impressões in(sub)conscientes

Corona Australis

Flores

Terra

Sol

Espaço interno




batismo

ungido pelas cores
retiro insetos
do baixo ventre

observo

tua face
negra
tenta
ofuscar
a clareza


olhares


integração

sobre a cidade cinza
nuvens
trazem formas
de entender
o vento solar
sopra
línguas de fogo
cuneiformes
narina de dragão
dentro de seu ventre
realizo a saga
de ser uno

espaço

o espaço
que ocupo
espaço uno
dentro
fora
tudo é espaço
que se move
tudo é espaço
de ocupação
olhares de raio X
adentro
seu espaço
porção imaterial
de tudo que que se manifesta
entro pela retina
e vejo a tinta
púrpura dos seus sentimentos
lançando seus tentáculos
em direção aos dias
buscando espaço
para crescer