cortei-me ao meio
com atalhos
que me levavam
do nada
a lugar nenhum
escorri por entre as frestas
abertas
e cada parte buscou
alento
em seu breve desejo
dividido
meu templo
construí meu templo
com pedras arrancadas
dos meus obséquios
edifiquei-o com
justificativas pouco seguras
dos meus atrevimentos
assentei cada argumento
em seus devidos espaços
busquei aplainar as aparências
para se parecerem com
o que acreditava ser
as coisas
Domingo. Manhã fria de inverno. Um dia de céu azul e sol brilhante. Àquela hora do dia, o sol já despontava de trás de algumas árvores ao lado da velha casa. No final da rua dos Arlequins, cruzamento com a rua dos Visigodos, o movimento era intenso. O entroncamento se dava numa espécie de morro e no final deste havia uma escadaria que saía para uma pequena praça. Este curioso aspecto da anatomia das ruas fazia com que a principal, a dos Arlequins, não tivesse saída. O que fazia o lugar parecer ainda mais lotado. Havia vendedores de todo tipo. Feirantes, camelôs, engraxates e até meninos fazendo malabarismos para garantir um trocado. Ali vendia-se de tudo: legumes, verduras, ovos, galinhas e quinquilharias. Todos esbravejando um contra o outro, tentando insistentemente ganhar os clientes no grito. Aquele barulho todo dava para se ouvir a muitos metros de distância. Bem ao lado do burburinho havia uma pequena vila. As casas eram pequenas e na sua maioria muito simples, mas nem por isso os moradores deixavam de torná-las apresentáveis. Em uma das casas morava um senhor aparentando sessenta e poucos anos. Aos domingos, após a igreja ele passava na feira para comprar alguns produtos para o almoço. Calado e introvertido, quase não falava e passava pelas tendas cumprimentando as pessoas com um sorriso e um balançar de cabeça. Pendia a cabeça levemente para frente e depois, voltando a cabeça para trás, com um leve toque dos dedos na aba da boina, concluía o seu ritual de cumprimentos dominicais.
Todos os moradores da rua contavam que ficara assim depois da morte da esposa. Antes do infortúnio dizem que era falante e que andava pela rua a brincar com os vizinhos e a contar anedotas. Contam que sua esposa era uma senhora muito talentosa e que tinha dom para música. Atuava como soprano no coral da cidade. Sua alegria era tê-la em casa a cantar as árias mais belas que existiam, dizia. Mas depois de seu falecimento tudo perdera o brilho em sua vida. E desde então pôs-se a falar apenas o necessário. Havia doado todas as coisas que gostava e que o fazia relembrá-la. Foi assim com seu violoncelo. Falam dele como um exímio violoncelista. E que haviam se encontrado através da música. As únicas coisas que restavam em sua casa era: uma cama, um fogareiro, uma panela sem tampa, uma colher, um garfo, uma faca, uma máquina de lavar roupas, duas mudas de roupa e um terno para ir a igreja. Neste domingo, porém, parecia estar com o semblante diferente. Parecia ter uma alegria guardada. Vinha andando calmamente, passinhos leves e curtos como sempre. Trazia consigo um canudo de papel em baixo do braço. Ao passar pela feira, neste dia, não parou em nenhuma banca e não comprou nada como era de costume. Foi direto a um poste que ficava no final da rua dos Arlequins, desenrolou o canudo e colou o cartaz, que dizia: “Troco uma máquina de lavar por um violoncelo.”
vertigem
Muitos anos se passaram, mais de trinta talvez.
Os feitos do passado, como golpes, que tomaram impulso todo esse tempo; hoje vêm me nocautear.
Eu ainda a vejo como antes.
Parada no tempo.
Imóvel.
E eu?
Sinto vertigem.
a esperança
Com o rosto colado na parede sentia o cheiro de mofo incrustado. Voltei tateando até encontrar novamente o interruptor. Acendi a luz; o telefone tocou ao mesmo tempo. Alô?! Quem está falando, fale vamos! Tenho que sair desse lugar!! E a voz disse: - Tudo o que resta é a esperança. Desligou.
a flor
Alguém se aproximava. Senti sua presença. Abri os olhos. Olhei para os lados e nada. Olhei para baixo e vi uma criança bem pequena segurando uma flor nas mãos. Me agachei para ficar mais próximo dela. Perguntei se estava perdida. Ao que ela me respondeu: - Eu não, mas você está. Senti uma certa vertigem com a resposta. Fugi do assunto. Perguntei sobre a flor. Ela disse se tratar de uma flor rara e que a tinha trazido para mim.
o bosque
Estava caminhando pelo bosque já fazia alguns minutos. O som do vento passando pela vegetação trazia um frescor de amanhecer à experiência. O cheiro úmido de terra entrava pelas minhas narinas trazendo lembranças sedimentadas no passado. Parei por um instante. Fechei os olhos para mergulhar ainda mais naquela sensação que me arrebatava para outros momentos. Agora podia ouvir, com mais nitidez, cada um dos sons que emanavam daquele lugar. Ouvia os barulhos dos pássaros e de pequenos estalidos no mato rasteiro, com aguçada sensibilidade. Escutei uma voz ao longe. Parecia chamar por alguém. Coisas da minha cabeça, talvez. Não havia ninguém ali.
o primeiro passo
Aquela luz estava ofuscando minha visão. Não conseguia saber o que estava acontecendo. Apaguei a luz e fiquei por um tempo na escuridão. Fiquei um tempo imóvel com os olhos fechados. Decidi testar meus sentidos. Andei na direção da parede e comecei a tateá-la, vendo se conseguiria me orientar no escuro sem bater em nada. Dei o primeiro passo. Podia sentir com minha mão a textura da parede e sua temperatura. De repente o telefone tocou novamente. -Alô! Quem é? Fale alguma coisa. Fale, vamos! Foi você quem me colocou aqui? Silêncio.
o lugar
Andava pela rua principal de um vilarejo abandonado. Sentia que ainda restava uma pessoa lá. Avistei ao longe um morro com uma pedra muito grande encravada no topo. Seguindo meus instintos e subi até lá. Ao chegar, me deparei com o velho sentado. Meditava segurando um pássaro entra as mãos. Decidi interrompê-lo. Perguntei o que fazia ali naquele lugar. Prontamente o velho saiu de seu transe e me respondeu com uma pergunta. - Que lugar? Argumentei. - Este lugar onde está sentado agora. Ao que respondeu. - O lugar não existe. Tudo está na sua mente. Senti uma certa vertigem com a resposta tão prontamente colocada. Indaguei. - Pode ser que o lugar esteja em minha mente, mas o que faz sentado numa pedra com um pássaro preso entre as mãos. Retrucou. - Busco o sentido das coisas. Neste momento ele soltou o pássaro que voou alguns metros, mas como tinha suas perninhas amarradas por uma linha, foi puxado de volta. O velho tornou a prendê-lo entre as mãos e voltou a meditar.
os olhos
Minha visão foi voltando aos poucos. Olhei fixamente para a luz durante alguns instantes. Notei que a lâmpada pendia de um fio, do centro do teto, e ficava dependurada sobre da cama. Um pensamento me pegou novamente. Por quanto tempo estaria eu deitado naquele lugar? Não tinha portas, sequer janelas. Como tinha entrado ali? E o quadro? Quem seria aquela pessoa estampada na tela? Muitos pensamentos vinham à tona. Mas nada fazia sentido. O telefone tocou subitamente. Atendi assustado. Do outro lado uma voz grave e solene disse: - Confie na força do hábito. Não use os olhos!
o sótão
Acordei em um quarto estranho. Esfreguei bem os olhos, vasculhei os objetos em volta, e vi que mais parecia um depósito. Um sótão talvez. Tentei a todo custo encontrar detalhes do lugar que me fizesse lembrar de algo, mas nada me fazia suspeitar que lugar era aquele. Na minha frente havia um quadro pendurado na parede. Como o teto era baixo e inclinado, o quadro parecia estar torto. A cama em que acordei parecia estranha, lembrava uma cama de hospital. Minhas costas estavam me matando. Parecia que tinha dormido um sono muito profundo, durante muito tempo. Concluí, então, que era essa dor que tinha me acordado. Notei que ao meu lado havia um criado mudo e um telefone sobre ele. Neste mesmo lado, mais acima, um interruptor. Passei a mão sobre ele e a luz se acendeu. Um clarão tomou conta do lugar. Meus olhos, ainda sensíveis, nada enxergavam.
cemitério
Visitei o cemitério já não faz muito tempo. Lá é o lugar onde a vida acontece no passado. Gosto de ir para ficar em contato com o que é estático. Nada se move. Tudo está em profundo repouso. Só eu me movo. Encontrei, neste dia, um túmulo abandonado. Era de um menino. Nascera no ano de 1951 e falecera no ano de 1968. Fiquei tentando imaginar o que teria acontecido com aquela criança para que deixasse a vida tão rápido. Sua foto, meio apagada pelo passar dos anos, revelava uma criança com feição angelical e olhos tristes.
Ilustração: Carnero
o sinal
Cheguei aqui com uma mão na frente e outra atrás. Vim para trabalhar. Larguei tudo para trás: pai, mãe, irmãos. Meses antes, tinha recebido um sinal de que minha vida ia mudar. Eu queria melhorar de vida e ajudar minha família. Pois do lugar de onde venho, tudo que se planta não vinga. Lembro como se fosse hoje. Cheguei na rodoviária trazendo uma caixa com minhas coisas e uma sacola com algumas mudas de roupa. No bolso trazia as minhas últimas economias. Desci naquele lugar que mais parecia um formigueiro de tanta gente. Encostei em um canto tomando coragem. Fazia um frio que nunca tinha sentido. Estava com fome. Quis voltar para trás. Mas já não podia, o dinheiro não dava. E também não podia deixar de cumprir minha promessa. Respirei fundo. Fiz o sinal da cruz. Peguei minhas tralhas e fui seguindo a multidão em direção à uma escada rolante. Nunca tinha andado numa. Só tinha ouvido falar. Era tão alta que me dava tontura só de olhar. Fiquei ali parado. Até que algumas pessoas que vinham atrás de mim começaram a reclamar gritando para que eu entrasse logo ou que saísse de uma vez. Não sabia o que fazer. Aquele instante se transformou em uma enternidade para mim. Eu ali parado pensando na melhor maneira para entrar naquele negócio sem cair. E a aglomeração aumentando ao meu redor. De repente levei um solavanco e fui empurrado com tudo sobre aquela porcaria. Caí estatelado. A multidão, como uma manada enlouquecida, veio logo atrás. Entre cotoveladas, pisões e pontapés fui espremido na lateral da escada, que subia sem parar. Peguei algumas das minhas coisas que tinham caído nos degraus. Fui me ajeitando e fiquei por um momento imerso em estranhas sensações. Então vi que o final da escada chegava. Titubeei por um momento. Mas fui arremessado novamente pela pressão de todos que vinham se empurrando logo atrás de mim. Naquele momento comecei a compreender melhor o desafio que me aguardava. Teria que encarar aquela cidade. Um lugar onde se é empurrado de um canto a outro contra a vontade.
partes
na arte de dividir horizontes
me parto em pedaços
de muitas cores
cada olho tem seu olhar
cada mão o seu tato
cada parte
dividida
em outras partes
nesta divisão
sou tudo
e nada
conserto
procuro coisas para consertar
para te mostrar o meu amor
tiro as medidas das ações
para gerar outros sentimentos
aperto bem as intenções para
caber dentro das vontades
renascer
procuro uma manhã
bem bela para nascer
mimetizo os sons dos pássaros
para te oferecer delicadezas
corro por entre as árvores
para te espreitar um pouco mais
recebo o sol em minhas mãos
para te iluminar com pontos brancos
ando em tua direção para me corromper
mais uma vez
mosaico
redemoinhos de pensamentos
arrancam minha consciência
incendeio as horas
para ficar íntegro
percebo as cinzas
do tempo
no momento presente
sou mosaico de imagens
avançando
na eternidade