desterro
os dias me sedimentam
sofro de desterro por antecipação
a voz do vento
sopra armadilhas de quereres
me levanto
e recolho do chão
os pedaços
de outro alguém
o encontro
Embarquei para uma cidade que só conhecia de ouvir falar. Não tinha nada a perder. Só queria me perder um pouco para poder me encontrar. Buscava um lugar onde a vida fizesse um pouco mais de sentido. Cheguei na rodoviária às 11 da noite. Fazia frio. E minha companhia naquele momento era um cachorro que estava deitado no chão e uns poucos insetos que insistiam em me importunar. Só me restava sentar e esperar até que o ônibus chegasse. Nesse meio tempo sentou-se ao meu lado uma senhora acompanhada de uma criança. Deixava transparecer uma certa timidez. Ensaiou bastante e, mostrando seu bilhete, me dirigiu a palavra perguntando se aquela era a plataforma de embarque correta. Disse que sim e que o ônibus estava para chegar. Perguntei para onde estava indo. Disse que ia levar seu filho ao médico. Perguntei o que tinha o menino. Me respondeu que era doença ruim.
palavras
lufadas de palavras
me arrebatam
para além da percepção
abro minhas asas
secretas
e flutuo
com o deleite
inconsciente
de estar
sentado ao sol
com a mente aberta
para arejar
e no final
eu
e você
e pensamentos
soltos
vagando
e as asas a bater
e a brisa a soprar
poesias
um dia
hoje o dia começou sem mim
o dia amanhaceu
eu não
o dia brilhou
eu não
o dia choveu
eu não
o dia entardeceu
eu não
o dia acabou
eu não
mas quando a noite chegou
clareei
reparação
reparo cada partícula de amor
para caber em mim
refaço minha face
esquadrinhando
outros traços
refaço meus movimentos
tentando enquadrá-los
em meu roteiro inicial
repenso os pensamentos
mais caros
e insisto encaixá-los
na realidade do dia
mas sinto que tudo
a despeito de mim
parece caminhar
como sempre
o coração
minha casa
Minha casa é onde eu durmo. Casa de operário. Casa simples. É o que dá pra pagar. É feita pra viver perto do trabalho. Pra mim todos os dias são iguais. Saio de manhã, passo o dia na labuta e à noite volto para dormir. Às sete horas da noite a gente se reúne para escutar o noticiário. Meu pai senta ao lado do rádio. Se alguém o interrompe, fica muito bravo. Meu irmão não fala nada, é mudo. Minha mãe está no céu. Era quem falava comigo. A gente rezava juntos antes de dormir.
visão
Daqui, minha visão é privilegiada.
Vejo que uma teia intrincada de fios prende, inexplicavelmente, uma pessoa a outra.
náufrago
à noite
navego a deriva
no mar do subconsciente
oceano desconhecido
instintos a me guiar
ao fundo
das mais remotas profundezas
no meu mar
crio meus monstros
serpentes lânguidas
a me espreitar
no meu mar
conheço
cada pedaço
cada ilha
cada rochedo
mas é nele que insisto em naufragar
nas ondas da solidão
nas intempestivas correntes de pensamentos
bênçãos
as contrações aumentam
sou expelido como água
levado para a margem
de lá observo
tudo
me deixo levar
já não resisto
às ondas que me lançam
contra as rochas
mas depois
inerte
abraço seu corpo
desconhecido
em seu colo
resgato as águas cálidas
do útero materno
que me aquece
e me enlouquece
bem devagar
sem querer
o mundo
me tira de lá
minhas mão de feto
acompanham os movimentos da alma
e meu corpo
exausto
recebe
suas bênçãos
intenção
transbordo
como um rio
que corre para o nada
busco a intenção perfeita
de ser riacho
contudo
tudo é levado pela correnteza
me represo em pensamentos
mas a força das vontades
vai derrubar as barreiras
destruir tudo
o que é velho
autópsia do tempo
na autópsia do tempo
enterrado no passado
abro as vísceras do momento
procurando vestígios
de memórias
escondidas nas dobras da existência
teia
na esquina da consciência
um emaranhado
de fios de esperança
me prendem
com minhas longas pinças
escolho com cuidado
os pedaços que ainda restam de mim
ao me desprender
entro na contramão
dos acontecimentos
e assim
se vão os dias
universo imaterial
a brotar
consciência alterada
(foto: www.felipecretella.com.br)
o roxo dos ipês
me alucina
suas pétalas
soltas
entram pela
retina
e o roxo de seus pigmentos
impregna
em minha consciência
alterada
centenário
hoje é o dia do centenário
meu avô, já morto
vem receber meus parabéns
fui a sua casa hoje de manhã
minha avó, já morta
ficou surpresa em me ver
tudo estava como sempre foi
nos abraçamos
falamos por horas a fio
e na despedida
como sempre
nos olhamos nos olhos
e dissemos
até logo
espaços
realidades infinitas
se apresentam
depois da escuridão
me debato
tentando não entrar
sem sucesso
busco respostas
e o que vem são perguntas
no espelho do agora
sou fantoche
de plástico
contemplando a textura da imaginação
e meus olhos, o que vêem?
pequenos espaços entre as bolhas dos pensamentos
peso
sou zeppelin gigante
voando baixo
um peso enorme
e avassalador me consome
vou baixando
até tocar o solo
medo
angústias
me pressionam contra o chão
e no breve rastejar de minhas partes
me deparo com o todo
universal
anônimos
espíritos ondulam ao vento
nos lugares mais remotos
os tecidos de suas faces
se desprendem em formas de pássaros
nos ínfimos recônditos da desconfiança
escamas de sensações
inatingíveis
o vermelho escorre por entre as lembranças
atingindo os lugares mais profundos da existência
no porão das almas perdidas
me deparo com vultos anônimos
nas sombras das memórias esquecidas
seus gritos clamam por amor
interiores
feixes de era
brotam à luz de vagas lembranças
gimnospermas
angiospermas
pteridófitas
lentamente
se fixam
nas janelas
do mundo interior
memórias
pontas de icebergs
despontam na superfície
das memórias esquecidas
uma criança
fala da profundidade
das coisas escondidas
no baú das desilusões
ovos
insetos invadem a consciência
muitos deles
tento esmagá-los
com golpes de racionalidade
a cada tapa certeiro
eles se multiplicam
pequenos ovos
brotam sob meu leito
lentamente retomam
suas formas originais
expiação
vago num vôo cego
a contemplar
minhas mãos crucificadas
as chagas
me consomem
pouso como fuligem
na escadaria de uma catedral
a multidão
assombrada
derrama vinho e hóstias
no chão
contemplo a todos
espiando pelos buracos de minhas mãos
busco a vida na morte
no altar da eterna expiação
subconsciente
nos escombros
do subconsciente
repousam orgias
restos de ilusões
pedaços de ideais
poeiras de vontades
cacos de pensamentos
contradições mofadas
matéria inerte em decomposição
sob o pântano
um brotar de imagens
aflorando
na superfície da realidade
raízes
atravesso campos
apinhados de estranhas sensações
percebo as portas do tempo se abrindo
no espaço da percepção
sou zumbi
sentado à sombra de Baobás
raízes imensas
savanas da África
face negra a brilhar
ritmo de tambores
lanças e espinhos
busco um buraco
sair ou entrar?
neste momento
dentro ou fora
tudo é igual
Ilustração: Felipe Cretella
buracos
por entre as cortinas retintas
olho através dos olhos
de outro alguém
sou platéia atuando em mil cenários
recortes feitos de papel de pão
colados com visgos extraídos da imaginação
quando enfim contorno a esquina das memórias
a chuva me fala de lugares
perdidos nos buracos dos pensamentos
o trovão silencia as vozes
e os atores
com sono
voltam a dormir
hoje
passeio num mar sem fim
caravelas
velas abertas expostas ao vento
o futuro se mostra
a casa nas costas
carrego meu mundo
como um imenso João-de-barro
a voar
trago comigo rumos
para outros lugares
delírios diurnos
suores noturnos
o sol desponta em meu peito
e a lua no horizonte
ontem eu queria que hoje já fosse amanhã
árvore
no lugar de uma árvore
agora restam apenas
cavacos espalhados pelo chão
ao redor dos restos
seis homens a velar
aquele espaço vazio
agora cheio de terra
revolvida
onde a vida
um dia brotou
não há mais o que pesar
já se foramos brotos
as folhas
os galhosas raízes
no intuito de terminar o trabalho
os homens
rústicos e práticos
tampam tudo com cimento
sem emoção ou sentimento
somente razão
chuva
quem me dera ser céu
de manhã chover
de tarde estiar
de noite garoar
com minhas águas de chuva
lavar tudo
criança
velho
morto
todos
barraco
escadaria da catedral
a pele seca do lavrador
lavar sem diferença
pois sou chuva
e no estio dos dias
deixo que se assentem as partículas
deixo que repousem
os pingos nas folhas das árvores
e a noite
quando tudo estiver calmo e tranquilo
cairei lentamente
embalando o sono de quem dorme
o amor de quem ama
e aliviando a dor de quem sofre
quem me dera ser água neste mundo
árido
reconstrução
para se reconstituir os dias não convividos
é necessário muito tempo
talvez mais tempo
do que se possa imaginar
mas no intento da reconstrução
me deparo com a desconstrução
e nesse eterno vaivém
do tempo passado
vejo que não há maneiras
para realizar tal intento
aqui
neste momento
presente
só consigo imaginar
o que poderia
ter sido
e não foi
mas com a esperança
de que o futuro
construirá
a lua
metade da lua desponta no céu
reluz como um ovo
que sai da cloaca celeste
em busca do ninho
a lua no céu escuro
como uma lâmpada celeste a iluminar
formas
as chaminés anunciam
com sua fumaça
sinais de fuligem
e desgraça
mais um dia seco
e quente
colunas de fumo
espessas como nuvens
encobrem toda a cidade
envenenam todas as formas de vida
neste pequeno espaço de existência
a cidade
vista de cima minha cidade
tem luzes com um quê de poesia
cada casa
cada canto
cada poste
cada vaso
cada planta
cada porta
cada parte
é um todo
vista daqui de onde estou
a essa hora
a cidade dorme
e seus postes
como abajures
conservam à meia luz
todos que habitam em suas
ruas
casas
casebres
prédios
nesta cidade
cada canto
conserva um quê de saudade
mas não da vida como ela é agora
dura e compactada
pela luz que estatela a todos no pano de fundo
da realidade do agora
mas a vida de antes
a vida como era
a vida da imaginação
de ver o que não se via
de sentir o que não se tinha
de pegar o que era inalcançável
a cidade, à meia luz, reúne todos
cães, vivos, mortos, almas e passarinhos
todos à meia luz
vôo
como um urubu
eu subo nas correntes ascendentes
de lá de cima observo o dia
observo tudo lá embaixo
lá de cima
acima das nuvens
fico a observar os pontos no chão
leve como o ar
leve como a pluma
me deixo levar
pelo ar
o sol aquece o ar
e minhas asas
negras
negro ponto
pronto para voar
acima
além
da linha do horizonte
acima
das montanhas
das nuvens brancas
como a espuma do mar
sou urubu
vôo alto
identifico o que é ruim
devoro tudo
minha língua
minha saliva
curam
transformam a carne podre em alimento
vôo bem alto
a identificar
em minhas próprias carnes
o que há de podre
de minhas carnes tiro o que é ruim
e aliviado
vôo
ainda mais alto