matizes
um universo de cores
invade minha percepção
respiro cada um dos seus matizes
em cada cor uma revelação
em cada luz uma forma
de reinventar o contrário
torço-me em espiral
para caber em minha existência
quasares
deitado
em absoluto repouso
observo as veias
pulsando
com a intensidade
dos quasares
mais longínquos
percebo cada ponto
ligado a outro ponto
a cabeça solta
destacada
dos membros
observa
com olhos de espanto
a subtração
dimensões
um buraco
se abriu no peito
revelou-se um abismo
do amor fez-se o ódio
e de tudo o que existia
nada restou
à medida que
as dimensões
se justapõem
compreendo
um pouco mais
sobre o todo
que me contém
caminhos
perdi a cabeça
embora tenha
feito tudo
para segurá-la
não resisti
outras esferas a detém
agora
meus pés
vagam pelos
caminhos
ressequidos
pelo tempo
os dias
por contentamento
me confronto
com coisas
que não são divisíveis
transformo meus dias
em partes iguais
para entender
a morte
o todo é maior
que a soma das
partes
me contento
com a transformação
experiência
concentro todo meu esforço
em amputar minha razão
antes do amanhecer
terei caminhado muito tempo
as luzes das galáxias
escondidas no passado
lançam seus olhares
profundos sobre tudo
o coração anuncia cada batida
a retina se abre
por onde entra
repentinamente
uma porção do amor
as ilusões se esvaem
pelos poros abertos
o amor
é uma experiência única
observação
descamo minha pele
para identificar o que há por trás
espremo bem os pensamentos
para saber quais são os meus
observo cada ruga
para escutar suas histórias
corto as unhas
bem curtas
para não me violentar
raspo minha cabeça
assim sou verdadeiro
arranco as sobrancelhas
para não obscurecer a visão
passo vagarosamente
a língua pelos dentes
para sentir que ainda sou livre
estrelas
fujo das minhas convicções
para uma consciência maior
sei que o tempo
trai quem insiste em encontrar
coisas invisíveis
assim é nosso momento
transição constante rumo ao infinito
à noite
rabisco o firmamento
procurando um caminho entre as estrelas
e o pincel de luz
me atrai para um ponto de fuga
finco os pés no chão
com mais força
e ao sentir a terra
entre meus dedos
me fundo com as pedras
o magma da criação
me instrui sobre os caminhos internos
lentamente as estrelas
brilham intensamente
em minha mente
azul
verdades
sentado em obituários
respondo perguntas aos mortos
que vem me procurar
busco o sentido da vida
nas questões da morte
uma serpente me ronda
com ares pouco confiáveis
tomo meu cajado
e espreito seus movimentos
tortuosos
entro nas frestas
claras da escuridão
é de lá que eles vêm
esperam uma chance de fazer sentido
escolho as cores que me dilaceram
sinto que o tudo se torna mais claro
sigo o caminho que me propus
sem saber
para onde vai
extraio um pouco de mim a cada dia
meu intuito
chegar a verdade
sentido
Não sei de deveria confessar tamanhos absurdos. Mas tenho uma enorme predileção por não fazer nada. Ou melhor dizendo; não quero nada da vida. Ela quer tudo de mim. Corre atrás de mim o tempo todo. Foi ela que me chamou até aqui. Disso tudo, nada faz sentido.
vista
contemplo
a vista sinuosa
da paisagem
ando pelos trechos
mais esguios
das minhas vontades
o sol se põe
verdejando a criação
natureza
a natureza tem voz
enorme
de não dar vontade
de falar nada
firmo minhas raízes
bem fundo
e lanço meus galhos
para o céu
imóvel
recebo suas palavras
do chão
imensidão
caio num sono profundo
imersa em fluídos estranhos
num solavanco sou tirada dali
de volta
por um breve momento
o tempo pára
e sou lançada na imensidão
busca
entro na tua casa
buscando teu sorriso
e encontro coisas
imagino o tempo voltando
nós nos abraçando
curando nossas feridas
e nos dizendo palavras de amor
momentos
sou apegado a momentos
busco reviver cada passagem
para não te esquecer
sei que todos os dias
quando o sol bater nas folhas das árvores
tua luz vai invadir a velha casa
e nos revelar eternamente juntos
inerte
deitada aí
onde estás agora
ninguém sabe
das tuas feridas
mais profundas
ninguém viu
tuas curas mais belas
descansando assim
ninguém imagina
quantos trabalhos realizaste
dormindo dessa maneira
ninguém sabe
dos teus sonhos mais caros
neste breve momento
tuas mãos
inertes
me dizem
adeus
medidas
meço cada passo
até chegar em teu leito
analiso as ranhuras das pedras pregadas no chão
para o tempo não passar
seguro tuas mãos
e juntos temos mais força
o céu está nublado
os pingos da chuva vêm mostrar a transformação
mm cada gota um brilho
e o amor se expande
até não mais existir
choro
chora
que este choro é de amor
chora
que te abraço
e te mostro os caminhos
a partir de agora
chora mais
teus medos
tuas angústias
tuas lembranças primeiras
chora
que teu choro é de lavação
chora
que teu infinito interior
pede para ter um fim
marcas
Marquei-me com o ferro em brasa. Ainda sinto o cheiro de carne queimada. As lembranças vêm desprovidas de sentido. Surgem como ervas daninhas. Como conviver com isso? Os dias passam a me escorar como murros de arrimo. Mas o véu da noite me cega confortavelmente, sem que eu precise me condenar.
As fagulhas em brasa passam pelo meu corpo inerte, já não me fazem mal algum. Tudo está esparramado pelo chão. Tudo o que já tive, agora está acabado.
Saí daquele lugar com a cabeça em chamas. Minhas orelhas pareciam se desintegrar. Apalpei-as levemente e senti uma dor aguda percorrer meus dedos. O cheiro de pêlo queimado percorreu minhas narinas e desapareu no ar. Sentia-me sedento. Foi assim que comecei a me entender melhor.
dividido
cortei-me ao meio
com atalhos
que me levavam
do nada
a lugar nenhum
escorri por entre as frestas
abertas
e cada parte buscou
alento
em seu breve desejo
meu templo
construí meu templo
com pedras arrancadas
dos meus obséquios
edifiquei-o com
justificativas pouco seguras
dos meus atrevimentos
assentei cada argumento
em seus devidos espaços
busquei aplainar as aparências
para se parecerem com
o que acreditava ser
as coisas
Domingo. Manhã fria de inverno. Um dia de céu azul e sol brilhante. Àquela hora do dia, o sol já despontava de trás de algumas árvores ao lado da velha casa. No final da rua dos Arlequins, cruzamento com a rua dos Visigodos, o movimento era intenso. O entroncamento se dava numa espécie de morro e no final deste havia uma escadaria que saía para uma pequena praça. Este curioso aspecto da anatomia das ruas fazia com que a principal, a dos Arlequins, não tivesse saída. O que fazia o lugar parecer ainda mais lotado. Havia vendedores de todo tipo. Feirantes, camelôs, engraxates e até meninos fazendo malabarismos para garantir um trocado. Ali vendia-se de tudo: legumes, verduras, ovos, galinhas e quinquilharias. Todos esbravejando um contra o outro, tentando insistentemente ganhar os clientes no grito. Aquele barulho todo dava para se ouvir a muitos metros de distância. Bem ao lado do burburinho havia uma pequena vila. As casas eram pequenas e na sua maioria muito simples, mas nem por isso os moradores deixavam de torná-las apresentáveis. Em uma das casas morava um senhor aparentando sessenta e poucos anos. Aos domingos, após a igreja ele passava na feira para comprar alguns produtos para o almoço. Calado e introvertido, quase não falava e passava pelas tendas cumprimentando as pessoas com um sorriso e um balançar de cabeça. Pendia a cabeça levemente para frente e depois, voltando a cabeça para trás, com um leve toque dos dedos na aba da boina, concluía o seu ritual de cumprimentos dominicais.
Todos os moradores da rua contavam que ficara assim depois da morte da esposa. Antes do infortúnio dizem que era falante e que andava pela rua a brincar com os vizinhos e a contar anedotas. Contam que sua esposa era uma senhora muito talentosa e que tinha dom para música. Atuava como soprano no coral da cidade. Sua alegria era tê-la em casa a cantar as árias mais belas que existiam, dizia. Mas depois de seu falecimento tudo perdera o brilho em sua vida. E desde então pôs-se a falar apenas o necessário. Havia doado todas as coisas que gostava e que o fazia relembrá-la. Foi assim com seu violoncelo. Falam dele como um exímio violoncelista. E que haviam se encontrado através da música. As únicas coisas que restavam em sua casa era: uma cama, um fogareiro, uma panela sem tampa, uma colher, um garfo, uma faca, uma máquina de lavar roupas, duas mudas de roupa e um terno para ir a igreja. Neste domingo, porém, parecia estar com o semblante diferente. Parecia ter uma alegria guardada. Vinha andando calmamente, passinhos leves e curtos como sempre. Trazia consigo um canudo de papel em baixo do braço. Ao passar pela feira, neste dia, não parou em nenhuma banca e não comprou nada como era de costume. Foi direto a um poste que ficava no final da rua dos Arlequins, desenrolou o canudo e colou o cartaz, que dizia: “Troco uma máquina de lavar por um violoncelo.”
vertigem
Muitos anos se passaram, mais de trinta talvez.
Os feitos do passado, como golpes, que tomaram impulso todo esse tempo; hoje vêm me nocautear.
Eu ainda a vejo como antes.
Parada no tempo.
Imóvel.
E eu?
Sinto vertigem.
a esperança
Com o rosto colado na parede sentia o cheiro de mofo incrustado. Voltei tateando até encontrar novamente o interruptor. Acendi a luz; o telefone tocou ao mesmo tempo. Alô?! Quem está falando, fale vamos! Tenho que sair desse lugar!! E a voz disse: - Tudo o que resta é a esperança. Desligou.
a flor
Alguém se aproximava. Senti sua presença. Abri os olhos. Olhei para os lados e nada. Olhei para baixo e vi uma criança bem pequena segurando uma flor nas mãos. Me agachei para ficar mais próximo dela. Perguntei se estava perdida. Ao que ela me respondeu: - Eu não, mas você está. Senti uma certa vertigem com a resposta. Fugi do assunto. Perguntei sobre a flor. Ela disse se tratar de uma flor rara e que a tinha trazido para mim.
o bosque
Estava caminhando pelo bosque já fazia alguns minutos. O som do vento passando pela vegetação trazia um frescor de amanhecer à experiência. O cheiro úmido de terra entrava pelas minhas narinas trazendo lembranças sedimentadas no passado. Parei por um instante. Fechei os olhos para mergulhar ainda mais naquela sensação que me arrebatava para outros momentos. Agora podia ouvir, com mais nitidez, cada um dos sons que emanavam daquele lugar. Ouvia os barulhos dos pássaros e de pequenos estalidos no mato rasteiro, com aguçada sensibilidade. Escutei uma voz ao longe. Parecia chamar por alguém. Coisas da minha cabeça, talvez. Não havia ninguém ali.
o primeiro passo
Aquela luz estava ofuscando minha visão. Não conseguia saber o que estava acontecendo. Apaguei a luz e fiquei por um tempo na escuridão. Fiquei um tempo imóvel com os olhos fechados. Decidi testar meus sentidos. Andei na direção da parede e comecei a tateá-la, vendo se conseguiria me orientar no escuro sem bater em nada. Dei o primeiro passo. Podia sentir com minha mão a textura da parede e sua temperatura. De repente o telefone tocou novamente. -Alô! Quem é? Fale alguma coisa. Fale, vamos! Foi você quem me colocou aqui? Silêncio.
o lugar
Andava pela rua principal de um vilarejo abandonado. Sentia que ainda restava uma pessoa lá. Avistei ao longe um morro com uma pedra muito grande encravada no topo. Seguindo meus instintos e subi até lá. Ao chegar, me deparei com o velho sentado. Meditava segurando um pássaro entra as mãos. Decidi interrompê-lo. Perguntei o que fazia ali naquele lugar. Prontamente o velho saiu de seu transe e me respondeu com uma pergunta. - Que lugar? Argumentei. - Este lugar onde está sentado agora. Ao que respondeu. - O lugar não existe. Tudo está na sua mente. Senti uma certa vertigem com a resposta tão prontamente colocada. Indaguei. - Pode ser que o lugar esteja em minha mente, mas o que faz sentado numa pedra com um pássaro preso entre as mãos. Retrucou. - Busco o sentido das coisas. Neste momento ele soltou o pássaro que voou alguns metros, mas como tinha suas perninhas amarradas por uma linha, foi puxado de volta. O velho tornou a prendê-lo entre as mãos e voltou a meditar.
os olhos
Minha visão foi voltando aos poucos. Olhei fixamente para a luz durante alguns instantes. Notei que a lâmpada pendia de um fio, do centro do teto, e ficava dependurada sobre da cama. Um pensamento me pegou novamente. Por quanto tempo estaria eu deitado naquele lugar? Não tinha portas, sequer janelas. Como tinha entrado ali? E o quadro? Quem seria aquela pessoa estampada na tela? Muitos pensamentos vinham à tona. Mas nada fazia sentido. O telefone tocou subitamente. Atendi assustado. Do outro lado uma voz grave e solene disse: - Confie na força do hábito. Não use os olhos!
o sótão
Acordei em um quarto estranho. Esfreguei bem os olhos, vasculhei os objetos em volta, e vi que mais parecia um depósito. Um sótão talvez. Tentei a todo custo encontrar detalhes do lugar que me fizesse lembrar de algo, mas nada me fazia suspeitar que lugar era aquele. Na minha frente havia um quadro pendurado na parede. Como o teto era baixo e inclinado, o quadro parecia estar torto. A cama em que acordei parecia estranha, lembrava uma cama de hospital. Minhas costas estavam me matando. Parecia que tinha dormido um sono muito profundo, durante muito tempo. Concluí, então, que era essa dor que tinha me acordado. Notei que ao meu lado havia um criado mudo e um telefone sobre ele. Neste mesmo lado, mais acima, um interruptor. Passei a mão sobre ele e a luz se acendeu. Um clarão tomou conta do lugar. Meus olhos, ainda sensíveis, nada enxergavam.
cemitério
Visitei o cemitério já não faz muito tempo. Lá é o lugar onde a vida acontece no passado. Gosto de ir para ficar em contato com o que é estático. Nada se move. Tudo está em profundo repouso. Só eu me movo. Encontrei, neste dia, um túmulo abandonado. Era de um menino. Nascera no ano de 1951 e falecera no ano de 1968. Fiquei tentando imaginar o que teria acontecido com aquela criança para que deixasse a vida tão rápido. Sua foto, meio apagada pelo passar dos anos, revelava uma criança com feição angelical e olhos tristes.
Ilustração: Carnero
o sinal
Cheguei aqui com uma mão na frente e outra atrás. Vim para trabalhar. Larguei tudo para trás: pai, mãe, irmãos. Meses antes, tinha recebido um sinal de que minha vida ia mudar. Eu queria melhorar de vida e ajudar minha família. Pois do lugar de onde venho, tudo que se planta não vinga. Lembro como se fosse hoje. Cheguei na rodoviária trazendo uma caixa com minhas coisas e uma sacola com algumas mudas de roupa. No bolso trazia as minhas últimas economias. Desci naquele lugar que mais parecia um formigueiro de tanta gente. Encostei em um canto tomando coragem. Fazia um frio que nunca tinha sentido. Estava com fome. Quis voltar para trás. Mas já não podia, o dinheiro não dava. E também não podia deixar de cumprir minha promessa. Respirei fundo. Fiz o sinal da cruz. Peguei minhas tralhas e fui seguindo a multidão em direção à uma escada rolante. Nunca tinha andado numa. Só tinha ouvido falar. Era tão alta que me dava tontura só de olhar. Fiquei ali parado. Até que algumas pessoas que vinham atrás de mim começaram a reclamar gritando para que eu entrasse logo ou que saísse de uma vez. Não sabia o que fazer. Aquele instante se transformou em uma enternidade para mim. Eu ali parado pensando na melhor maneira para entrar naquele negócio sem cair. E a aglomeração aumentando ao meu redor. De repente levei um solavanco e fui empurrado com tudo sobre aquela porcaria. Caí estatelado. A multidão, como uma manada enlouquecida, veio logo atrás. Entre cotoveladas, pisões e pontapés fui espremido na lateral da escada, que subia sem parar. Peguei algumas das minhas coisas que tinham caído nos degraus. Fui me ajeitando e fiquei por um momento imerso em estranhas sensações. Então vi que o final da escada chegava. Titubeei por um momento. Mas fui arremessado novamente pela pressão de todos que vinham se empurrando logo atrás de mim. Naquele momento comecei a compreender melhor o desafio que me aguardava. Teria que encarar aquela cidade. Um lugar onde se é empurrado de um canto a outro contra a vontade.
partes
na arte de dividir horizontes
me parto em pedaços
de muitas cores
cada olho tem seu olhar
cada mão o seu tato
cada parte
dividida
em outras partes
nesta divisão
sou tudo
e nada
conserto
procuro coisas para consertar
para te mostrar o meu amor
tiro as medidas das ações
para gerar outros sentimentos
aperto bem as intenções para
caber dentro das vontades
renascer
procuro uma manhã
bem bela para nascer
mimetizo os sons dos pássaros
para te oferecer delicadezas
corro por entre as árvores
para te espreitar um pouco mais
recebo o sol em minhas mãos
para te iluminar com pontos brancos
ando em tua direção para me corromper
mais uma vez
mosaico
redemoinhos de pensamentos
arrancam minha consciência
incendeio as horas
para ficar íntegro
percebo as cinzas
do tempo
no momento presente
sou mosaico de imagens
avançando
na eternidade
desterro
os dias me sedimentam
sofro de desterro por antecipação
a voz do vento
sopra armadilhas de quereres
me levanto
e recolho do chão
os pedaços
de outro alguém
o encontro
Embarquei para uma cidade que só conhecia de ouvir falar. Não tinha nada a perder. Só queria me perder um pouco para poder me encontrar. Buscava um lugar onde a vida fizesse um pouco mais de sentido. Cheguei na rodoviária às 11 da noite. Fazia frio. E minha companhia naquele momento era um cachorro que estava deitado no chão e uns poucos insetos que insistiam em me importunar. Só me restava sentar e esperar até que o ônibus chegasse. Nesse meio tempo sentou-se ao meu lado uma senhora acompanhada de uma criança. Deixava transparecer uma certa timidez. Ensaiou bastante e, mostrando seu bilhete, me dirigiu a palavra perguntando se aquela era a plataforma de embarque correta. Disse que sim e que o ônibus estava para chegar. Perguntei para onde estava indo. Disse que ia levar seu filho ao médico. Perguntei o que tinha o menino. Me respondeu que era doença ruim.
palavras
lufadas de palavras
me arrebatam
para além da percepção
abro minhas asas
secretas
e flutuo
com o deleite
inconsciente
de estar
sentado ao sol
com a mente aberta
para arejar
e no final
eu
e você
e pensamentos
soltos
vagando
e as asas a bater
e a brisa a soprar
poesias
um dia
hoje o dia começou sem mim
o dia amanhaceu
eu não
o dia brilhou
eu não
o dia choveu
eu não
o dia entardeceu
eu não
o dia acabou
eu não
mas quando a noite chegou
clareei
reparação
reparo cada partícula de amor
para caber em mim
refaço minha face
esquadrinhando
outros traços
refaço meus movimentos
tentando enquadrá-los
em meu roteiro inicial
repenso os pensamentos
mais caros
e insisto encaixá-los
na realidade do dia
mas sinto que tudo
a despeito de mim
parece caminhar
como sempre
o coração
minha casa
Minha casa é onde eu durmo. Casa de operário. Casa simples. É o que dá pra pagar. É feita pra viver perto do trabalho. Pra mim todos os dias são iguais. Saio de manhã, passo o dia na labuta e à noite volto para dormir. Às sete horas da noite a gente se reúne para escutar o noticiário. Meu pai senta ao lado do rádio. Se alguém o interrompe, fica muito bravo. Meu irmão não fala nada, é mudo. Minha mãe está no céu. Era quem falava comigo. A gente rezava juntos antes de dormir.
visão
Daqui, minha visão é privilegiada.
Vejo que uma teia intrincada de fios prende, inexplicavelmente, uma pessoa a outra.
náufrago
à noite
navego a deriva
no mar do subconsciente
oceano desconhecido
instintos a me guiar
ao fundo
das mais remotas profundezas
no meu mar
crio meus monstros
serpentes lânguidas
a me espreitar
no meu mar
conheço
cada pedaço
cada ilha
cada rochedo
mas é nele que insisto em naufragar
nas ondas da solidão
nas intempestivas correntes de pensamentos
bênçãos
as contrações aumentam
sou expelido como água
levado para a margem
de lá observo
tudo
me deixo levar
já não resisto
às ondas que me lançam
contra as rochas
mas depois
inerte
abraço seu corpo
desconhecido
em seu colo
resgato as águas cálidas
do útero materno
que me aquece
e me enlouquece
bem devagar
sem querer
o mundo
me tira de lá
minhas mão de feto
acompanham os movimentos da alma
e meu corpo
exausto
recebe
suas bênçãos
intenção
transbordo
como um rio
que corre para o nada
busco a intenção perfeita
de ser riacho
contudo
tudo é levado pela correnteza
me represo em pensamentos
mas a força das vontades
vai derrubar as barreiras
destruir tudo
o que é velho
autópsia do tempo
na autópsia do tempo
enterrado no passado
abro as vísceras do momento
procurando vestígios
de memórias
escondidas nas dobras da existência
teia
na esquina da consciência
um emaranhado
de fios de esperança
me prendem
com minhas longas pinças
escolho com cuidado
os pedaços que ainda restam de mim
ao me desprender
entro na contramão
dos acontecimentos
e assim
se vão os dias
universo imaterial
a brotar
consciência alterada
(foto: www.felipecretella.com.br)
o roxo dos ipês
me alucina
suas pétalas
soltas
entram pela
retina
e o roxo de seus pigmentos
impregna
em minha consciência
alterada
centenário
hoje é o dia do centenário
meu avô, já morto
vem receber meus parabéns
fui a sua casa hoje de manhã
minha avó, já morta
ficou surpresa em me ver
tudo estava como sempre foi
nos abraçamos
falamos por horas a fio
e na despedida
como sempre
nos olhamos nos olhos
e dissemos
até logo
espaços
realidades infinitas
se apresentam
depois da escuridão
me debato
tentando não entrar
sem sucesso
busco respostas
e o que vem são perguntas
no espelho do agora
sou fantoche
de plástico
contemplando a textura da imaginação
e meus olhos, o que vêem?
pequenos espaços entre as bolhas dos pensamentos
peso
sou zeppelin gigante
voando baixo
um peso enorme
e avassalador me consome
vou baixando
até tocar o solo
medo
angústias
me pressionam contra o chão
e no breve rastejar de minhas partes
me deparo com o todo
universal
anônimos
espíritos ondulam ao vento
nos lugares mais remotos
os tecidos de suas faces
se desprendem em formas de pássaros
nos ínfimos recônditos da desconfiança
escamas de sensações
inatingíveis
o vermelho escorre por entre as lembranças
atingindo os lugares mais profundos da existência
no porão das almas perdidas
me deparo com vultos anônimos
nas sombras das memórias esquecidas
seus gritos clamam por amor
interiores
feixes de era
brotam à luz de vagas lembranças
gimnospermas
angiospermas
pteridófitas
lentamente
se fixam
nas janelas
do mundo interior
memórias
pontas de icebergs
despontam na superfície
das memórias esquecidas
uma criança
fala da profundidade
das coisas escondidas
no baú das desilusões
ovos
insetos invadem a consciência
muitos deles
tento esmagá-los
com golpes de racionalidade
a cada tapa certeiro
eles se multiplicam
pequenos ovos
brotam sob meu leito
lentamente retomam
suas formas originais
expiação
vago num vôo cego
a contemplar
minhas mãos crucificadas
as chagas
me consomem
pouso como fuligem
na escadaria de uma catedral
a multidão
assombrada
derrama vinho e hóstias
no chão
contemplo a todos
espiando pelos buracos de minhas mãos
busco a vida na morte
no altar da eterna expiação
subconsciente
nos escombros
do subconsciente
repousam orgias
restos de ilusões
pedaços de ideais
poeiras de vontades
cacos de pensamentos
contradições mofadas
matéria inerte em decomposição
sob o pântano
um brotar de imagens
aflorando
na superfície da realidade
raízes
atravesso campos
apinhados de estranhas sensações
percebo as portas do tempo se abrindo
no espaço da percepção
sou zumbi
sentado à sombra de Baobás
raízes imensas
savanas da África
face negra a brilhar
ritmo de tambores
lanças e espinhos
busco um buraco
sair ou entrar?
neste momento
dentro ou fora
tudo é igual
Ilustração: Felipe Cretella
buracos
por entre as cortinas retintas
olho através dos olhos
de outro alguém
sou platéia atuando em mil cenários
recortes feitos de papel de pão
colados com visgos extraídos da imaginação
quando enfim contorno a esquina das memórias
a chuva me fala de lugares
perdidos nos buracos dos pensamentos
o trovão silencia as vozes
e os atores
com sono
voltam a dormir
hoje
passeio num mar sem fim
caravelas
velas abertas expostas ao vento
o futuro se mostra
a casa nas costas
carrego meu mundo
como um imenso João-de-barro
a voar
trago comigo rumos
para outros lugares
delírios diurnos
suores noturnos
o sol desponta em meu peito
e a lua no horizonte
ontem eu queria que hoje já fosse amanhã
árvore
no lugar de uma árvore
agora restam apenas
cavacos espalhados pelo chão
ao redor dos restos
seis homens a velar
aquele espaço vazio
agora cheio de terra
revolvida
onde a vida
um dia brotou
não há mais o que pesar
já se foramos brotos
as folhas
os galhosas raízes
no intuito de terminar o trabalho
os homens
rústicos e práticos
tampam tudo com cimento
sem emoção ou sentimento
somente razão
chuva
quem me dera ser céu
de manhã chover
de tarde estiar
de noite garoar
com minhas águas de chuva
lavar tudo
criança
velho
morto
todos
barraco
escadaria da catedral
a pele seca do lavrador
lavar sem diferença
pois sou chuva
e no estio dos dias
deixo que se assentem as partículas
deixo que repousem
os pingos nas folhas das árvores
e a noite
quando tudo estiver calmo e tranquilo
cairei lentamente
embalando o sono de quem dorme
o amor de quem ama
e aliviando a dor de quem sofre
quem me dera ser água neste mundo
árido
reconstrução
para se reconstituir os dias não convividos
é necessário muito tempo
talvez mais tempo
do que se possa imaginar
mas no intento da reconstrução
me deparo com a desconstrução
e nesse eterno vaivém
do tempo passado
vejo que não há maneiras
para realizar tal intento
aqui
neste momento
presente
só consigo imaginar
o que poderia
ter sido
e não foi
mas com a esperança
de que o futuro
construirá
a lua
metade da lua desponta no céu
reluz como um ovo
que sai da cloaca celeste
em busca do ninho
a lua no céu escuro
como uma lâmpada celeste a iluminar
formas
as chaminés anunciam
com sua fumaça
sinais de fuligem
e desgraça
mais um dia seco
e quente
colunas de fumo
espessas como nuvens
encobrem toda a cidade
envenenam todas as formas de vida
neste pequeno espaço de existência
a cidade
vista de cima minha cidade
tem luzes com um quê de poesia
cada casa
cada canto
cada poste
cada vaso
cada planta
cada porta
cada parte
é um todo
vista daqui de onde estou
a essa hora
a cidade dorme
e seus postes
como abajures
conservam à meia luz
todos que habitam em suas
ruas
casas
casebres
prédios
nesta cidade
cada canto
conserva um quê de saudade
mas não da vida como ela é agora
dura e compactada
pela luz que estatela a todos no pano de fundo
da realidade do agora
mas a vida de antes
a vida como era
a vida da imaginação
de ver o que não se via
de sentir o que não se tinha
de pegar o que era inalcançável
a cidade, à meia luz, reúne todos
cães, vivos, mortos, almas e passarinhos
todos à meia luz
vôo
como um urubu
eu subo nas correntes ascendentes
de lá de cima observo o dia
observo tudo lá embaixo
lá de cima
acima das nuvens
fico a observar os pontos no chão
leve como o ar
leve como a pluma
me deixo levar
pelo ar
o sol aquece o ar
e minhas asas
negras
negro ponto
pronto para voar
acima
além
da linha do horizonte
acima
das montanhas
das nuvens brancas
como a espuma do mar
sou urubu
vôo alto
identifico o que é ruim
devoro tudo
minha língua
minha saliva
curam
transformam a carne podre em alimento
vôo bem alto
a identificar
em minhas próprias carnes
o que há de podre
de minhas carnes tiro o que é ruim
e aliviado
vôo
ainda mais alto